Mulheres, álcool e drogas: pesquisa revela desafios no acesso à saúde
Pesquisa aborda como questões sociais e culturais influenciam o atendimento oferecido às mulheres na Atenção Primária à Saúde
11 de dezembro de 2024 - alcool, Atenção Primária, divulgação científica, drogas, mulheres
Vitor Pepino*

Mulheres em uso abusivo de álcool e outras drogas enfrentam barreiras significativas no acesso a cuidados na Atenção Primária à Saúde (APS). É o que revela a pesquisa “Mulheres Usuárias de Álcool e Outras Drogas na Atenção Primária à Saúde: uma Revisão Integrativa com enfoque nas perspectivas de pacientes e profissionais de saúde”. O estudo analisa como fatores sociais, de gênero e estigmas culturais afetam o diagnóstico precoce e a qualidade do atendimento, trazendo reflexões importantes para a prática profissional e o desenvolvimento de políticas públicas.
A pesquisa foi motivada pela vivência da autora, Vanessa Isabel Marçal Fileto, no cuidado a mulheres em dois Centros de Referência em Saúde Mental – Álcool e Drogas (CERSAMs AD) e em uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Em sua prática, ela observou lacunas no acolhimento dessas pacientes, frequentemente invisibilizadas por estigmas associados ao gênero e ao uso de substâncias.
A vivência no SUS evidenciou a complexidade do cuidado oferecido a mulheres em situação de vulnerabilidade. Na UBS, por meio de reuniões de matriciamento com equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF), foram detectados casos recorrentes de uso de benzodiazepínicos e outras substâncias psicoativas entre mulheres que buscavam atendimento para queixas genéricas. Já nos CERSAMs AD, a autora observou que muitas pacientes em uso prejudicial de álcool e ou drogas chegavam espontaneamente ou indicadas por terceiros, sem que houvesse um encaminhamento consistente pela APS.
Benzodiazepínicos (BZD) são medicamentos que atuam no sistema nervoso central, com efeitos tranquilizantes, sedativos, hipnóticos, ansiolíticos e anticonvulsivantes. São usados para tratar sintomas de ansiedade, como transtorno de ansiedade generalizada, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno de ansiedade social e por performance, e transtorno obsessivo-compulsivo.
Essa realidade despertou questionamentos sobre como o cuidado inicial oferecido pelas unidades básicas de saúde poderia ser mais eficiente e acolhedor. “É notório que o uso de substâncias por mulheres ainda é invisibilizado, tanto pelos profissionais quanto pelas próprias pacientes, que evitam expor sua situação por medo de julgamento”, aponta a pesquisadora.
O impacto dos estigmas sociais e de gênero no cuidado
Mulheres enfrentam julgamentos sociais por estarem associados ao papel de cuidadora, que, na percepção da sociedade, não condiz com o uso de álcool e drogas. Esse estigma é ainda mais forte em mulheres gestantes, que omitem o uso de substâncias por receio de perder a guarda de seus filhos ou sofrerem retaliações familiares.
A revisão integrativa revelou que a abordagem nas consultas de rotina nas UBS raramente inclui questionamentos sobre o uso de substâncias, o que retarda o diagnóstico e, consequentemente, o tratamento. A autora destaca que essa invisibilidade é agravada por concepções normativas que influenciam a prática dos profissionais.
“A concepção de cuidado em saúde direcionado às mulheres colabora com a manutenção de seu lugar social: o cuidado é ofertado para que retomem o seu lugar de provedoras, cuidadoras e do lar- um lugar idealizado. Muitas vezes a abstinência é o que o profissional espera da mulher, o que pode ser um objetivo muito diferente da usuária”, destaca Vanessa.
A pesquisa identificou, também, barreiras específicas que dificultam o acesso das mulheres aos cuidados necessários como o foco na saúde reprodutiva que privilegia questões relacionadas à saúde materno-infantil, deixando em segundo plano demandas de saúde mental e uso de substâncias psicoativas além de diagnósticos tardios que só ocorrem em estágios avançados, preconceitos e julgamentos associados ao papel social da mulher e a falta de apoio familiar que muitas vezes condena em vez de apoiar a busca por tratamento.
A vulnerabilidade de mulheres em uso abusivo de substâncias
Além das questões já mencionadas, a pesquisa ressalta que muitas mulheres em uso abusivo de substâncias estão expostas a situações de violência física e sexual, principalmente aquelas que utilizam drogas ilícitas. Essa realidade demanda uma abordagem integrada que vá além do sistema de saúde, envolvendo políticas públicas de proteção social.
O estudo propõe que estratégias como capacitação profissional com treinamentos, que abordem o tema com empatia e sem preconceitos, busca ativa para identificação precoce de pacientes e abordagens baseadas na clínica ampliada que propõe uma escuta acolhedora e abrangente, são fundamentais para melhorar o cuidado. Além disso, destaca a importância da intersetorialidade com integração de políticas públicas e atividades educativas na comunidade para desmistificar o uso de substâncias.
O papel dos determinantes sociais e políticas públicas
De acordo com a pesquisa, o uso de álcool e drogas entre mulheres não pode ser analisado isoladamente. Fatores como raça, classe social e gênero interagem para aumentar a vulnerabilidade dessas pacientes. Mulheres negras e em situação de pobreza enfrentam barreiras ainda maiores no acesso à saúde, refletindo as desigualdades estruturais da sociedade.
A autora reforça que políticas de saúde devem incorporar a perspectiva de gênero para superar estigmas e preconceitos no atendimento às mulheres. Além disso, é necessário ampliar o foco da atenção primária, indo além da saúde reprodutiva e priorizando o cuidado integral e equitativo.
“A APS tem um papel fundamental na identificação precoce e no acompanhamento dessas pacientes. É preciso garantir que as mulheres sejam vistas em sua totalidade, como indivíduos que precisam de cuidado e acolhimento, sem julgamentos ou estereótipos”, conclui a pesquisadora.
Pesquisa: Mulheres Usuárias de Álcool e Outras Drogas na Atenção Primária à Saúde: uma Revisão Integrativa com Enfoque nas Perspectivas de Pacientes e Profissionais de Saúde
Programa: Programa de Pós-Graduação em Promoção de Saúde e Prevenção da Violência
Autora: Vanessa Isabel Marçal Fileto
Orientadora: Andrea Maria Silveira
Data da defesa: 12 de agosto 2024
*Vitor Pepino – Estagiário de Jornalismo
Revisão: Débora Nascimento