A dor silenciada da doença falciforme


03 de maio de 2019


*Marcela Brito

Mesmo procurando o serviço de saúde, pacientes ainda têm seus relatos minimizados e ignorados

Foto: Carol Morena

“Ninguém respeita a sua dor, não quer saber da doença, não quer conhecer”, conta a presidenta da Associação de Pessoas com Doença Falciforme e Talassemia do Estado de Minas Gerais (Dreminas) e portadora da doença, Maria Zenó. De acordo com o Programa de Triagem Neonatal de Minas Gerais (PTN-MG), a alteração genética que afeta uma a cada 1.400 pessoas no estado ainda é desconhecida por muitos profissionais da saúde, que podem negligenciar manifestações importantes da doença, como a dor.

A pediatra que atua como referência técnica para doença falciforme no Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico da Faculdade de Medicina da UFMG (Nupad), Ana Paula Pinheiro, explica que conhecer a enfermidade é um fator importante para o cuidado e a compreensão das necessidades dessas pessoas. “Isso diminuiria a dor e o sofrimento, além de ajudar no adequado acesso dos pacientes aos serviços de saúde”, completa Ana Paula.

A presidenta da Dreminas, Maria Zenó, conta que já teve, por diversas vezes, seus relatos de dores minimizados nos serviços de saúde, sendo taxada como dependente química de morfina. Ela acredita que a confusão se deve à falta de informações sobre a doença falciforme.

“Você fica 6 horas esperando para ser atendida, rola de dor no chão, grita e até se morde, e as pessoas não estão nem aí.  ‘A dor não é tão forte assim, é porque ela é viciada em morfina e por isso está assim’. Naquele momento que estou sentindo dor, eu quero ser tratada com dignidade, e esse descaso no atendimento acontece comigo e com outros pacientes, principalmente com crianças”, relata a presidenta da Dreminas.

Maria Zenó é presidenta da Dreminas e portadora da doença falciforme. Foto: Carol Morena

Perfil dos pacientes

Segundo dados da Dreminas, 95% dos pacientes acompanhados pela associação são negros, percentual que está relacionado a origem africana da doença.

Práticas discriminatórias ligadas à raça como o racismo institucional, isto é, a crença de um superioridade de raças dentro de organizações, contribuem para que as necessidades e cuidados com as pessoas portadoras da doença sejam negligenciadas. Isso porque, segundo Maria Zenó, existe o estereótipo no qual pessoas negras são mais ‘resistentes a dor’ e, dessa forma, suportariam maior tempo de espera no atendimento ou não precisariam de medicação.

A negligência do atendimento, seja pela demora no atendimento ou pela descrença no relato do paciente, resulta em óbitos evitáveis. “A gente perde quase 90% de pessoas de 17 a 30 anos por falta de acesso, conhecimento do profissional, e por causa do racismo”, afirma Maria Zenó.

Dor intensa

Das 5.800 famílias acompanhadas pela Dreminas, 98% estão incluídas Programa Federal Bolsa Família e 93% não concluíram o ensino fundamental. Para Zenó, os dados estão relacionados às limitações que a doença apresenta, uma vez que a dor intensa e outras manifestações podem dificultar no desempenho durante o trabalho. “São muitas consultas, transfusões, sangrias, exames de auto e média complexidade, o que gera uma demanda muito grande para que se tenha um benefício de prestação continuada. Porque, se eu não consigo trabalhar, eu vou viver de quê? ”, comenta.

De acordo com ela, já existe um projeto de lei para que a doença falciforme seja reconhecida como deficiência para inclusão nos Planos de Benefícios da Previdência Social.

Entenda
Benefício de prestação continuada é um benefício da assistência social no Brasil, prestado pelo INSS e previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em seu artigo 20.

Visibilidade

Ana Paula desenvolve pesquisas sobre a doença desde 1998 e aponta que um grande passo para estabelecer ações de enfrentamento é questionar a invisibilidade da doença, presente nos cursos de graduação e nos meios de comunicação. “Isso também se reflete na falta de informações sobre a doença entre os profissionais de saúde e a sociedade”, afirma.

Para Maria Zenó, é “através da educação que os profissionais de saúde, de educação, de assistência social, vão saber lidar com pacientes que possuem a doença falciforme”.

*Marcela Brito – estagiária de Jornalismo
Edição: Karla Scarmigliat