Crise Yanomami evidencia falta de assistência em saúde aos povos indígenas

Programa de rádio “Saúde com Ciência” traça panorama da situação dos indígenas neste momento de pandemia e explica por que os povos Yanomamis têm vivido cenário de guerra contra fome, desnutrição e doenças como a malária.


14 de dezembro de 2021 - , , , , , , , ,


A ameaça de extermínio dos Yanomamis colocou em pauta a crise de saúde nas reservas indígenas. Para se ter uma ideia, dados publicados pelo Ministério Público Federal mostram que 52% das crianças Yanomami estão desnutridas. Além disso, há 44 mil registros de malária em menos dois anos, sendo a população de 28 mil pessoas, o que significa boa parte foi contaminada mais de uma vez. Para além dessa etnia, a situação da saúde dos povos indígenas se mostra preocupante, com taxas de mortalidade infantil e de adultos jovens maiores que a população em geral.

De acordo com o especialista em povos Yanomamis, antropólogo e professor do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, Rogério Duarte do Pateo, essa população vem sofrendo com as atividades do garimpo ilegal, aumento de doenças infecciosas e parasitárias e falta de assistência em saúde.

“No momento, a malária se encontra absolutamente descontrolada, por falta de medidas preventivas, degradação ambiental que aumenta a proliferação dos mosquitos vetores e falta de medicamentos”, aponta o professor, que foi entrevistado pelo programa de rádio Saúde com Ciência. (Confira a entrevista na íntegra aqui).

O especialista lembra que existia uma política de treinamento de indígenas para fazer exames, identificar a malária e tomar as providências necessárias, que foi extinta antes mesmo do governo atual. Segundo Pateo, a ausência de políticas desse tipo somada a crise na gestão da saúde agravou a situação dos Yanomamis.

“Não deixa de ser uma ironia passarmos dois anos distribuindo comprimidos de cloroquina, um remédio para a malária que foi usado para covid, mas na hora de tratar na malária, não tem medicação”, pondera.

Além disso, a falta de acompanhamento nutricional para crianças e atividades garimpeiras ilegais elevam o risco de extermínio dos Yanomamis.

“É um ciclo. O garimpo leva a um processo de assédio sobre as aldeias. Os garimpeiros passam a oferecer alimentos aos indígenas, o que quebra toda uma estrutura nutricional e os tornam totalmente dependente de fonte externa de alimentos”, explica o professor.

Ele acrescente que o barulho do garimpo ao redor ou dentro das aldeias afasta os animais, prejudicando a caça. Sem contar que muitos jovens acabam sendo aliciados para o garimpo. Outra consequência dessa atividade, que promove a invasão das terras, é o assédio sexual.

O Ministério da Saúde e Funai (Fundação Nacional do Índios) negam abandono das terras Yanomamis e garante que há investimento na saúde dessas populações. Já o Ministério Público Federal recomendou em ofício publicado em 16 de novembro, que o Ministério da Saúde reestruture em 90 dias o atendimento aos povos indígenas Yanomamis. No texto, o órgão ressalta que, apesar de ter recebido R$ 190 milhões para assistência à saúde nos últimos dois anos, o território indígena registrou “piora acelerada dos indicadores de saúde”.

Pandemia aumenta vulnerabilidade

Foram cerca de 62 mil indígenas contaminados pela covid-19 e mil mortes. E um estudo da Faculdade de Medicina da UFMG mostra que crianças e adolescentes indígenas apresentam ao menos o dobro de risco de morte por covid-19 em relação às outras etnias no Brasil.

A redução no financiamento à saúde indígena aumentou a vulnerabilidade aos efeitos da pandemia. O relatório “O Brasil com Baixa Imunidade”, elaborado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), mostra que ao considerar os valores realmente executados pela União, a queda no orçamento para a saúde indígena foi de 16% – de R$ 1,76 bilhões para R$ 1,48 bilhões.

A professora da Escola de Enfermagem da UFMG, Érica Dumont, especialista em saúde dos povos indígenas, acrescenta que adoção de políticas desfavoráveis durante a pandemia também têm contribuído para piores indicadores de saúde. Ela cita a linha do tempo do Instituto Socioambiental, altamente respeitado por profissionais que atuam com povos indígenas.

“No primeiro mês, a Funai suspendeu cestas básicas, fez indicação de isolamento domiciliar sem proteger as terras indígenas dos garimpeiros. Ignorou a testagem desde o início, tanto que a primeira infecção por covid chega por um médico da Sesai [Secretaria de Saúde Indígena] e quando vem o auxílio emergencial, faz com os povos saiam das aldeias para buscar esse auxílio. Além de negarem atendimento para os indígenas que vivem na cidade”, detalha Érica, que também foi entrevistada pelo programa Saúde com Ciência. (Confira a verão completa aqui)

A especialista também pontua que a Funai executou só 38% do orçamento para auxílio emergencial e não incluiu os povos indígenas que estavam em terras demarcadas no plano de vacinação.

Além disso, demorou muito para as vacinas chegarem nas aldeias, que são muito distantes, o que exige uma logística muito especial. Muitos povos perderam seus parentes mais velhos, o que significa a perda de conhecimento, que diferente do nosso, não é passado de uma vez, não é passado nos livros.  São conhecimentos passados ao longo da vida. Perder esses parentes mais velhos é como queimar bibliotecas”, lamenta.

Conflitos de terras

Enquanto a recomendação era para que os indígenas permanecessem dentro de casa devido às medidas de contingenciamento da pandemia, as terras ficaram sem garantias de proteção por parte do governo. Nesse mesmo período, houve aumento de 1.000% no número de mortes em meio a conflitos de terra no país, de acordo com dados parciais divulgados Comissão Pastoral da Terra.  O dado contabiliza vítimas de doenças, acidentes e falta de políticas públicas de saúde e alimentação em áreas marcadas por conflitos de terra. Os dados registram nove mortes desse tipo em 2020, e 103 mortes em 2021, até novembro. Entre elas, 101 foram de indígenas Yanomami.

A professora Érica Dumont explica que a demarcação do território é central para a saúde. Por isso, ela demostra preocupação com o Projeto de Lei 490/ 2007, que altera a legislação da demarcação de terras indígenas.

Isso porque a precarização da vida nos territórios aumenta a desnutrição e incidência de doenças infecciosas e parasitárias, além de conflitos violentos. Com isso, a mortalidade dos indígenas em relação a população em geral se torna maior. Estudo que contou com a participação da professora Érica e outros pesquisadores da Escola de Enfermagem da UFMG*, em parceria com Observatório Brasileiro de Doenças e Agravos Não Transmissíveis, mostra que apenas 50% dos indígenas, a metade, sobrevive depois de 50 anos.

“As doenças infecciosas e parasitárias, por exemplo, a gente já sabe cuidar, não são novos desafios, o que representa pior qualidade do cuidado em saúde e piores condições de vida, sobretudo”, observa.

A pesquisa analisa a mortalidade e a carga de doenças nos anos de 2000, 2010 e 2018, e mostra também maior mortalidade nos primeiros anos de vida. Crianças indígenas, por exemplo, morrem cinco vezes mais que as não indígenas. Entre as causas, além da desnutrição e doenças infecciosas e parasitárias, estão problemas originados no período perinatal, bem perto do nascimento.

“Por isso, foi muito importante a mobilização que os indígenas fizeram contra esse governo, para lutar contra esse marco temporal, porque é um movimento também de defesa da saúde. E é preciso seguir lutando contra a PL, a precarização e a intenção de não cuidar dos povos indígenas. É importante também a resistência dos profissionais de saúde e o apoio a esses profissionais”, conclui Érica Dumont.

A PL 490/ 2007 trata do marco temporal e prevê que só poderão ser consideras terras indígenas aquelas que já estavam em posse desses povos na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. Assim, passa a exigir comprovação de posse. O texto também flexibiliza o contato com povos isolados, proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas e permite a exploração de terras indígenas por garimpeiros.

Saúde com Ciência

Para entender como funciona a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, na teoria e na prática, confira o programa de rádio Saúde com Ciência desta semana. O progama é produzido pelo Centro de Comunicação Social da Faculdade de Medicina da UFMG e tem a proposta de informar e tirar dúvidas da população sobre temas da saúde. Ouça na Rádio UFMG Educativa (104,5 FM) de segunda a quinta-feira, às 5h, 8h e 18h. Também é possível ouvir o programa pelo serviço de streaming Spotify.

*Participam do estudo “Mortalidade proporcional nos povos indígenas no Brasil nos anos 2000, 2010 e 2018”, publicado em outubro deste ano, Francielle Thalita Almeida Alves, Elton Junio Sady Prates, Luis Henrique Prado Carneiro, Ana Carolina Micheletti Gomide Nogueira de Sá, Érica Dumont Pena e Deborah Carvalho Malta.