Especialista discute restrição da doação de sangue entre homens gays

Em entrevista, professor fala sobre origem dessa restrição e seus impactos.


21 de novembro de 2018


*Raíssa César

Idade, peso, se tem doença infecciosa ou realizou viagens em locais com prevalência de malária… A lista de critérios para doação de sangue no Brasil é grande. Quase sempre ela é necessária para garantir a qualidade do material doado. No entanto, ainda hoje, homens que fazem sexo com homens (HSH) sofrem restrições para doar, por serem enquadrados em grupos de risco.

Professor Unaí Tupinambás. Foto: Carol Morena

Entrevistamos o médico infectologista e professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG, Unaí Tupinambás, sobre a origem dessa restrição e seus impactos. O professor é um dos responsáveis por conduzir a pesquisa que compara os efeitos do medicamento de Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP) importado e fabricado nacionalmente. Ele destaca a importância de se rediscutir, de maneira transparente e democrática, a restrição a esse grupo. Confira a seguir:

Qual a base da restrição de doação de sangue para HSH?

Todos os hemocentros, do mundo inteiro, têm vários critérios para doação de sangue. Não são todas as pessoas que podem doar, como quem viaja para área de transmissão de malária, quem está com febre, quem tem condições antropométricas, como baixo peso, entre outros. Essa base de proibição que temos hoje vem de antigamente. Os hemofílicos eram considerados vulneráveis ao HIV, pois recebiam transfusão de sangue quando ainda não havia testagem para o vírus. Os HSH também eram impedidos, pois a prevalência do HIV nessa população era alta. Até porque, naquela época, a sensibilidade e a especificidade do teste anti-HIV não era tão boa quanto hoje. Para se ter uma ideia, a janela imunológica, que é o tempo que leva para o exame detectar a infecção no organismo após o contato com o patógeno, chegava a três meses ou mais. Outra justificativa que utilizam é de que a prevalência do vírus em HSH continua alta. Enquanto na população geral é de 0,4%, entre os HSH, a prevalência chega a 15%.

Mas, com os avanços da tecnologia, essa restrição se justifica nos dias atuais?

Hoje, com exames de alta tecnologia, a janela imunológica é de dias, o que facilita o diagnóstico precoce do HIV. Além disso, antes da criação do SUS, a população não tinha muito acesso aos serviços de saúde, então as pessoas não tinham onde fazer o teste. O teste era feito somente após a doação do sangue. Porém, com a ampliação das unidades básicas de saúde e com a existência dos testes rápidos, isso mudou completamente. É necessário pontuar que, atualmente, quando se realiza uma política de saúde pública, acerta-se na maioria das vezes. No entanto, há políticas mais generalistas que deixam de olhar as particularidades. Mas hoje já temos condições de olhar essas particularidades e rever esse posicionamento quanto ao HSH, como está ocorrendo no Japão, nos países da Europa e nos países da América do Norte, como EUA e Canadá.

Por que a restrição tem como parâmetro grupos de risco, e não comportamentos de risco?

Não se fala mais em grupos de risco, pois não existem pessoas imunes ao HIV. Existem comportamentos mais vulneráveis ao vírus. Por exemplo, o sexo anal desprotegido é um dos fatores de risco para transmissão do vírus, porque ele tem mais contato com as células da mucosa desse local. É problemático generalizar a população HSH, pois existem pessoas de todos os matizes. Tem os que praticam relações sexuais casuais, os que fazem sexo desprotegido, os que se protegem, os que têm relações monogâmicas. Por outro lado, também há heterossexuais com comportamentos diversos. Toda generalização em políticas públicas pode tornar essas ações mais ágeis e seguras, com maiores chances de acerto, mas deixa-se de ver as particularidades.

As pessoas não poderiam fazer exames antes das doações? O sangue não é testado antes de ser repassado de qualquer forma?

O sangue de todos é testado, mas o problema continua sendo a janela imunológica. O doador pode ter tido contato com o vírus HIV há uma semana, e dar negativo no exame. Isso continua sendo um problema para a doação. Por isso, precisamos orientar as pessoas. Por exemplo, se a pessoa teve uma relação de risco atualmente, como um sexo desprotegido, com parceiro(a) desconhecido(a), se viajou para alguma área de transmissão de malária, deve evitar doar sangue nas primeiras quatro semanas, pois ela pode ter tido contato não somente com o HIV, mas com as Hepatites B e C, entre outras doenças. Mais do que discutir a mudança dessas normas, devemos educar a população.

Se o sangue for estocado e, após o período da janela imunológica, for testado e der negativo, ele poderia ser utilizado?

O sangue não pode ser estocado e testado após o período da janela imunológica. Uma vez doado e testado, o resultado não muda mais. A estratégia mais correta seria receber o sangue do doador, testar e, depois de um mês, convocar a pessoa para uma nova testagem. Se o exame continuasse negativo, a doação seria liberada. Mas, para isso, é necessário que o doador compareça duas vezes ao hemocentro para repetir os testes. Logisticamente, essa estratégia seria mais complexa, porque existe a chance de ele não voltar.

Tendo em vista a escassez de determinados tipos sanguíneos no Brasil, qual seria o impacto da ampliação de grupos de doação?

Liberando a doação de sangue para uma parcela da população, com certeza teria um aumento do estoque, o que seria interessante para todos. Além disso, a população HSH não seria discriminada. É importante ressaltar que várias pessoas não podem doar sangue, por vários motivos. Porém, a base da proibição desse público é uma questão histórica e epidemiológica, pois ainda hoje a prevalência do vírus nessa população é dez vezes maior do que na população em geral. É necessário rediscutir de forma clara, transparente e democrática a questão de doação de sangue entre população HSH. Um reposicionamento, seja retificando ou não os critérios atuais, contribuirá para reduzir o estigma, preconceito e a discriminação desta população que vem sofrendo há décadas, além de melhorar os estoques de hemoderivados no país.

Foto: Rodrigo Nunes | Flickr Ministério da Saúde

O senhor conhece algum projeto de lei que pretende mudar as restrições atuais?

Não sei exatamente se existe algum projeto de lei atualmente. Porém, num cenário ideal, educa-se a população, tem-se o teste rápido nas unidades básicas de saúde, com curta janela imunológica. Assim, pode-se repensar na restrição da doação de sangue. Existe um estudo na Itália que mostra que, quando a doação para HSH é liberada, a prevalência do vírus HIV nos doadores não aumenta. Isso não se deve a novos critérios para doação e, sim, pela maior divulgação sobre os cuidados dos doadores e acesso aos exames de HIV em muitos locais.  Além disso, a transmissão do vírus no Brasil, por transfusão de sangue, tende a zero. Também existem modelos matemáticos que mostram que, quando se tem essa conduta de liberação da doação, orientação dos doadores e um teste altamente eficaz, o risco de transmissão do vírus HIV é ínfimo, menor que um em um milhão. Nós sabemos que o Brasil é um país homofóbico. Após 2016, as taxas de homicídio da população LGBTQ aumentaram em 30%. Rediscutindo a doação de sangue, é possível diminuir as chances de discriminação e preconceito. São as duas grandes possibilidades que viriam com essa mudança de postura.

*Raíssa César – estagiária de Jornalismo