Ex-aluna da Medicina da UFMG é referência mundial

Karla Soares-Weiser se graduou na Faculdade de Medicina da UFMG e hoje é considerada referência em medicina baseada em evidências


27 de agosto de 2019


Karla Soares-Weiser, ex-aluna da Faculdade de Medicina da UFMG, é editora chefe da Cochrane Library. Foto: Carol Morena

Ela é pouca conhecida do público brasileiro. Mas se o assunto é medicina baseada em evidências, Karla Soares-Weiser é referência mundial. E tudo começou a partir do incentivo de professores da Faculdade de Medicina da UFMG, onde Karla Soares-Weiser se graduou em Medicina, com especialização em psiquiatria. Em sua jornada no mundo científico, incursão que se tornou parte da personalidade e carreira da médica e pesquisadora, Karla encontrou na medicina baseada em evidências outras razões humanitárias para se transformar em uma das maiores autoridades na área. E como reconhecimento, há quase dois meses, a médica assumiu o cargo de editora chefe da Cochrane Library, um dos postos de maior destaque da Colaboração Cochrane, organização sem fins lucrativos e referência mundial em apresentar evidências científicas para a tomada de decisões em saúde.

Nesta entrevista ao Centro de Comunicação (CCS), Karla Soares-Weiser conta sobre sua trajetória e o trabalho desenvolvido pela Colaboração Cochrane. Ela comenta o crescimento da área de medicina baseada em evidências e lembra de nomes que foram referências em sua busca por conhecimento científico, como dos professores da Faculdade de Medicina José Silveiro e Antônio Leite Radicchi. Confira!

A senhora acompanhou a Colaboração Cochrane praticamente desde sua fundação. O que seria a medicina baseada em evidências e como esse trabalho é desenvolvido pela organização?

KSW: A Cochrane é uma organização sem fins lucrativos fundada em 1993, em Oxford, por um médico britânico chamado Iain Chalmers, que trabalhou com alguns dos grandes epidemiologistas no Reino Unido, nas décadas de 1970 e 80. Um desses epidemiologistas, o Archie Cochrane, fez uma monografia para avaliar o sistema nacional de saúde no Reino Unido e viu que uma das coisas que faltava nas pesquisas e que poderia auxiliar o clínico, os usuários, era um resumo de todos os ensaios clínicos, organizados de maneira sistemática. Esse é o trabalho da Cochrane.

A organização é corresponsável por pegar um tópico, procurar todas as investigações que foram feitas sobre ele e utilizar uma metodologia muito sistematizada para colocar essas revisões juntas.

Assim, o usuário, que pode ser um clínico, consumidor de saúde, organização ou governo, por exemplo, vai ter a informação sobre qual seria a melhor decisão em termos clínicos relacionada ao tópico.

Para dar um exemplo: o governo quer começar a vacinar as crianças. Então, primeiro você precisa saber se essa vacina é eficaz. Para isso, a gente faz um ensaio clínico, para comparar a aplicação da vacina com o cenário em que nenhuma intervenção é feita, por exemplo, para dizer qual dos dois funcionaria melhor. A revisão sistemática da Cochrane tem como objetivo definir questões clínicas relevantes, identificar e avaliar a qualidade de todos os ensaios clínicos e sintetizar os resultados de uma maneira sistemática. Dessa forma, utilizamos do rigor científico para criar as revisões sistemáticas e a Cochrane Library é uma base de dados com mais de 8 mil revisões. Hoje, temos centros espalhados no mundo inteiro, inclusive em São Paulo, além de centros afiliados em outras partes do Brasil, como no Pará, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro.

Cochrane no mundo. Imagem Google.

E qual a importância desse rigor metodológico para a medicina baseada em evidências?

KSW: A importância da medicina baseada em evidências e a importância do Cochrane é de seguir um método, de sintetizar essa informação e dar um resultado que é sintetizado, mas com um rigor científico. O movimento dessa área começou há mais de 25 anos. Antes disso, a maioria das revisões eram feitas por profissional de saúde que se baseava na sua própria experiência e interesse clínico para fazer o resumo. O problema disso é que se eu fizer uma revisão dos artigos que eu conheço, eu tenho mais chance de avaliar aqueles que eu considero que são os melhores e mostrar um resultado com viés. A diferença das revisões produzidas pela Cochrane é que o processo de seleção e o rigor metodológico garantem a qualidade dessas revisões e evitam vieses.

O nosso objetivo é auxiliar a tomada de decisões em saúde com a publicação de revisões sistemáticas de alta qualidade e que se iniciam com questões clínicas relevantes.

O número de publicações no mundo hoje em dia cresce de uma maneira exponencial. Então, fica muito difícil para o profissional de saúde se manter atualizado.

Recentemente, a senhora se tornou editora chefe dessa organização, um dos cargos de maior destaque. Como foi a sua trajetória até assumir essa posição?

KSW: Eu me formei na UFMG em 1987 e fiz residência em psiquiatria, mas muito cedo eu vi que gostava mais da área de pesquisa do que da área clínica. Então, quando terminei a residência em psiquiatria, comecei um mestrado na Unicamp em epidemiologia em saúde mental. Depois, iniciei o doutorado na Unifesp. No meu primeiro ano lá, recebi uma bolsa para ir para Oxford, onde fui trabalhar com a Colaboração Cochrane, que naquela época tinha um ano de vida. Fui muito auxiliada por pessoas que realmente queriam envolver profissionais da área de saúde de países em desenvolvimento com pesquisas internacionais. Para mim, foi um momento muito especial. Passei dois anos em Oxford e durante esse tempo eu publiquei nove dessas revisões sistemáticas. Voltei para São Paulo por um ano, mas era uma época em que era muito difícil conseguir vagas nas universidades. Então, acabei aceitando o convite de ir atuar na Cochrane de Espanha, em Barcelona. Nessa época, a maior parte do meu trabalho consistia em treinar as pessoas para que fizessem as revisões sistemáticas. Depois de um ano lá, pessoalmente, eu me casei e me mudei para Israel. Lá, voltei a trabalhar com a Cochrane da Inglaterra. Isso no princípio dos anos 2000. Depois de um tempo fora, com uma empresa própria, fui convidada para voltar para a Cochrane, em 2015, como vice-editora chefe. Trabalhei quatro anos com o editor chefe, que se aposentou em maio deste ano.

É uma trajetória longa, mas uma das coisas mais importantes para mim é criar oportunidades, fazer o mesmo do que outros fizeram comigo quando comecei minha carreira.

Eu realmente acho que é muito importante que a gente tenha essa visão da diversidade, porque hoje é tudo tão conectado que podemos aprender um com o outro.

E de que forma a Faculdade de Medicina da UFMG contribuiu para essa jornada?

KSW: Eu tive muita sorte de ser estudante da UFMG. Eu trabalhei muito tempo com o grupo de nefrologia pediátrica que era coordenado, naquela época, pelo professor José Silveiro. Ele era uma pessoa que realmente ajudava muito os estudantes que estavam começando a carreira. Eu estava no terceiro ano de Medicina e começando a me interessar por pesquisas e a buscar entender um pouco mais as coisas. Trabalhei muito tempo com esse grupo, que foi uma influência muito forte para mim.

Outra influência muito forte foi o Internato Rural, que é um programa que considero muito especial dentro do currículo da Medicina. Fui para uma área que era coordenada pelo professor Antônio Leite Radicchi. Ele era uma pessoa que sempre tinha uma visão crítica e fazia com que a gente pensasse mais. Eu lembro que atuei no interior, perto de Teófilo Otoni, e foi uma experiência muito interessante. Uma das impressões mais fortes que tive foi ver uma criança de cinco anos que chegou com uma massa enorme no pescoço. Enfim, eu tive aquela curiosidade de saber qual era o problema, porque não parecia uma coisa muito comum. E era tuberculose. E esse menino vivia num agregado, que era uma casa com um quarto com vinte pessoas. Essa foi a minha primeira experiência com a investigação epidemiológica e determinantes sociais em enfermidades infecciosas. Fizemos um trabalho com o Antônio Leite para tentar prevenir a tuberculose naquela área.

Esse episódio teve uma importância muito grande para essa minha necessidade de buscar, de conhecer mais os fatos. E teve uma influência muito grande na minha carreira como cientista, porque, para mim, é muito importante essa visão de saúde pública.

Tanto que, apesar de ser uma psiquiatra, a maioria das coisas que fiz foi na área de doenças infecciosas. E uma coisa que foi muito comum tanto na experiência com a pediatria e quanto no Internato, foi essa questão de auxiliar outras pessoas que tinham menos recursos. 

Imagem site Cochrane.

Como é o seu trabalho atualmente, como editora chefe?

KSW: Hoje o meu trabalho é mais coordenar os processos. Eu tenho responsabilidade por todo esse processo editorial. São vários grupos: sobre esquizofrenia, saúde publica e câncer de mama, por exemplo. Cada grupo é especializado numa área. Eles fazem as revisões, que precisam passar por um processo editorial, de avaliação da qualidade, de saber se todos os critérios foram respondidos antes de o resumo ser publicado. Então eu auxilio, dou suporte a quem está fazendo esse processo. Chega num ponto que você quer auxiliar outras pessoas também. Por isso, para mim, é uma oportunidade.

Como você vê a medicina baseada em evidências no Brasil? É uma área que tem sido desenvolvida no país?

KSW: É uma área que é importante para um país como o Brasil. Na verdade, não precisa do mesmo tipo de recurso usado para outras áreas específicas, pois não é necessário um laboratório, por exemplo. Os recursos são mais de pessoal. Muita coisa já foi construída no Brasil, temos um centro em São Paulo com 20 anos. Mas também são muitos desafios, como em qualquer lugar.

 Mas uma das coisas que acho importante aqui é aumentar o conhecimento sobre a medicina baseada em evidências para que as pessoas possam fazer uso dessas revisões.

O Brasil tem uma massa crítica nas universidades e temos muita gente excelente trabalhando com a Cochrane no Brasil e passando a mensagem. Temos um congresso que é feito anualmente, sendo um ano na Europa e outro em alguma região do mundo. E o próximo será no Chile, justamente para aumentar a utilização de revisões sistemáticas na América Latina, no auxílio em decisões em saúde.

 O Ministério da Saúde tem um portal de Saúde Baseada em Evidências (PSBE). Como o trabalho da Cochrane pode contribuir para essa política?

KSW: A Cochrane auxiliou na formação do portal. Todos os países têm livre acesso à base de dados da organização e muitas das entradas desse portal citam revisões da Cochrane. Todas as revisões têm pelo menos os resumos traduzidos em 17 idiomas, e um deles é o português. A nossa intenção é dar acesso e expandir esse acesso às revisões de qualidade para auxiliar as pessoas. Hoje em dia, para auxiliar na difusão de conhecimentos, também fazemos podcasts e buscamos outras maneiras de disseminar os resultados das revisões.

E quais são os desafios que essa área encontra de uma forma geral, no mundo?

KSW: Na área de investigação, em geral, a gente tem sempre que procurar nos atualizarmos. Uma das coisas que temos investido muito é em maneiras de integrar tecnologia no processo da revisão sistemática, e outras maneiras de tornar os resultados desse trabalho mais acessíveis a todos.