Não somos filhinhos de papai


03 de março de 2015


*Autora: Luisa Leste Machado
Co-autores: Bruno Kurrle Lanza, Cristiano Afonso de Souza Pereira, Eduarda Raíssa Silva Duarte, Fernando Henrique de Assis, Frâncis Sampaio de Assis, Luana Assis Torres, Ronaldo Batista Melo Júnior e Samantha Viviane Lopes de Oliveira
Orientadora: Tatiana Tscherbakowski de Guimarães Mourão

 

Segunda-feira, 6h17 da manhã. Acorda assustado, procurando o relógio. Atrasado de novo. E com sono, pra variar. Como sempre, não dá tempo pra cochilar mais um pouco. Levanta que passa. Deixa o café pra trás, corre pra pegar o ônibus. E perde. Mais 15 minutos esperando. A professora vai brigar. Quem está esperando pelo serviço vai brigar. Quem não tem nada a ver com o serviço vai brigar também, porque na televisão disseram que a culpa é dele, de seus colegas, de seus professores e de outros, que ele não conhece, mas sabe que na verdade também não têm culpa. Só que, pra uma grande parte das pessoas, é mais fácil acreditar na televisão, então os verdadeiros culpados ficam esquecidos. Fazer o quê? Ele mesmo não vê TV há algum tempo, as provas finais são na semana que vem e as poucas horas que sobram têm que ser dedicadas ao sono, que está mais atrasado do que ele. Mas agora o ônibus chegou, daqui a pouco ele vai estar na faculdade e é hora de esquecer o cansaço. Nisso ele já está ficando bom – tem treinado desde a época do ensino médio, e depois naqueles dois anos de cursinho, afinal de contas ficar lembrando do sono perdido, das provas estressantes, das aulas maçantes e do dia-a-dia corrido é contraproducente, não vai ajudar em nada o seu trabalho. Entrou na sala 10 minutos atrasado – o trânsito estava horrível, parecido com o olhar atravessado da professora. Material separado, cansaço, contratempo e caras ruins devidamente esquecidos, é hora de começar o dia. À noite, quando estiver voltando pra casa, vai se sentir feliz e satisfeito com sua profissão, pronto pra começar tudo de novo. Pra isso, só precisa saber que conseguiu ajudar alguém. Assim, tudo vale a pena. Ou quase tudo…

Esse poderia ser o relato de um dia de qualquer estudante, do início da prática de qualquer profissão. Eu, a autora deste texto, no entanto, sou estudante de medicina e relato aqui algo que me é extremamente familiar. Estudantes de medicina e mesmo médicos formados têm sido vistos e divulgados no Brasil como legítimos “filhinhos-de-papai” – pessoas que não estão dispostas a encarar desafios e enfrentar dificuldades no exercício de sua profissão, acomodados no conforto familiar, mais preocupados com o dinheiro que ganham e que gastam do que com seus pacientes. A realidade que nós, médicos e estudantes, vivemos, entretanto, não poderia ser mais diferente.

Não há, entre nós, ninguém que tenha conseguido uma vaga para um dos cursos mais disputados do país sem ter feito esforços e sacrifícios consideráveis. Enquanto nos formamos, não podemos, na maioria das vezes, “trabalhar” – apesar de sabermos que nosso estudo e nossa atuação nos hospitais escola são, sim, uma forma de trabalho que deveria ser reconhecida (em alemão a palavra “arbeit” designa tanto profissões assalariadas quanto serviços e ocupações não remuneradas, como o estudo; conotação pouco usual na cultura brasileira). A carga horária de nosso curso é extensa e monopolizadora e a opção que nos resta é recorrer a nossas famílias ou, muitas vezes, a financiamentos e outros tipo de dívidas para manter nossas vidas e sustentar nossas despesas enquanto estudamos. Além das não raras dificuldades financeiras que assistimos colegas enfrentarem, estamos acostumados, também, a ver pessoas ao nosso redor se privarem de noites de sono, de confraternizações, de momentos com suas famílias e até mesmo da própria saúde para manterem em dia suas obrigações e aspirações acadêmicas e profissionais. Na verdade, cada um de nós que cursa ou que exerce a medicina já vivenciou inúmeras situações em que a vida pessoal foi colocada em segundo plano em detrimento do exercício da prática médica. Tal priorização da saúde do próximo não é, necessariamente, um sacrifício. Tomamos tais atitudes porque acreditamos que é este o nosso dever e, sobretudo, nosso propósito: fazer tudo aquilo que estiver ao nosso alcance para ajudar aqueles que precisam de nós. Por esse motivo escolhemos nossa carreira, e é um erro pensar que o dinheiro é fator de peso em nossa decisão – a medicina tem sido extremamente desvalorizada e a ideia de passar por tantas dificuldades em função apenas do retorno financeiro seria completamente desproposita.

Assim o que peço a você, leitor, é algo de certa forma simples: reconhecimento. Precisamos do reconhecimento daqueles que servimos para exercer nossa profissão. Por mais que, em muitos casos, estejamos de mãos atadas (seja pelo sistema de saúde ou por quaisquer outras condições) e não possamos, de fato, resolver problemas, nossa intenção é sempre a mesma: ajudar. Desde que tenhamos o respeito e a compreensão de nossos pacientes e da sociedade, nenhuma adversidade abalará nosso amor pela medicina, e sim nos motivará a buscar por melhores e mais justas condições de saúde para nossos pacientes e de trabalho para nós e nossos colegas. Não somos filhinhos de papai. Somos pessoas com o desejo de ajudar, mas também precisamos de ajuda.

 

Esta página é reservada a manifestações da comunidade universitária. Para ser publicado, o texto, com até 5000 caracteres, deverá versar sobre assunto de interesse da comunidade da Faculdade de Medicina, com enfoque amplo. Também deverá conter o nome completo do autor, seu vínculo com a universidade, telefones e correio eletrônico. O texto original poderá ser editado de acordo com as normas jornalísticas adotadas pela ACS Medicina. Sua publicação, porém, não exprime necessariamente a opinião da Faculdade de Medicina da UFMG.