Opinião: Conflitos de um professor em tempos de pandemia: muito mais que Covid – em busca de resiliência


20 de outubro de 2022 -


Pandemia – estivemos em um mesmo “barco” de incertezas: pacientes, alunos, familiares, professores, não sabendo para qual lugar remaríamos… Como escreveu Camus, no livro “A Peste”: “…Sim, era realmente o sentimento de exílio esse vazio que trazíamos constantemente dentro de nós, essa emoção precisa, o desejo irracional de voltar atrás ou, pelo contrário, de acelerar a marcha do tempo, essas flechas ardentes da memória… Houve no mundo igual número de
pestes e de guerras. E contudo, as pestes, assim como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas…”.

A pandemia pegou-nos de surpresa. Como médicos, professores, cidadãos, tentamos estudar os temas, se haveria algum agente terapêutico, consultando colegas e revistas científicas médicas para que pudéssemos nos orientar e para que enviássemos algum dado clínico significativo, para ajudar, de alguma forma, os que padeciam, diante do quadro infeccioso, ou dos que se preocupavam consigo mesmo, ou com seus familiares diante da possibilidade de infecção, sobretudo os mais frágeis, torcendo para que pesquisadores trouxessem vacinas e/ou anticorpos, no menor prazo possível.

Diante de flagelos, como pandemia ou guerra, geralmente nos unimos e tentamos criar resiliência, até que venha a possibilidade de cura ou de prevenção. Nosso desejo era de retomar as atividades do cotidiano, tentando alívio, por meios de válvulas de escape, para que pudéssemos superar o momento ruim e incerto, com música, entretenimento, escondendo, por vezes, o medo, paralisante, que nós, mais velhos ou experientes, não queríamos demonstrar, diante de filhos, sobrinhos, alunos, pacientes, como fez Guido (Roberto Benini) diante de seu filho Giosué (Giorgio Cantarini), no filme “A vida é Bela”, propiciando bom humor e criatividade, diante de incertezas cruéis… Lembro-me da felicidade, quando virtualmente, professores amigos, como Leandro Malloy, Antônio Alvim, Débora Miranda e o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva, convidaram-me para elaborar um texto – “Saúde Mental na pandemia – considerações práticas multidisciplinares sobre cognição, emoção e comportamento” – uma oportunidade para estudar, mimetizar a vida de outrora, por meio de troca de informações e possibilidade de auxílio à população.

Lembro também das informações repassadas pelo amigo e irmão de alma, professor Rodrigo Ribeiro dos Santos, na visão de clínico e geriatra, sobre avanços no tratamento de quadros graves, além de conversa com ele, esposa e família, por vídeo, além de presente que eles me encaminharam – DVD e roteiro comentado sobre minha trilogia predileta – “O Poderoso Chefão”. Lembro da felicidade, de quando o amigo, estimado professor Marco Romano Silva, pediu-me relatoria sobre o projeto de pesquisa sobre aspectos neuropsiquiátricos e covid-19, das conversas com os amigos professor Luiz Armando de Marco e José Carlos C. da Silveira, por telefone, e-mail ou mesmo em idas à Faculdade de Medicina, estranhando bastante a situação (parecia um filme distópico, apocalíptico…).

Também causou muito impacto positivo o presente do amigo, professor Humberto Correa, quando em páscoa de 2020, encaminhou, gentilmente, uma deliciosa bacalhoada, para minha residência. O envolvimento de pesquisadores e professores da UFMG, em busca de vacinas provocavam uma certa ansiedade e alegria de saber que, em momento difícil, a Faculdade de Medicina e a UFMG se direcionavam para um papel de fundamental importância, em busca do que fosse possível, para amenizar a situação, bem como professores, também amigos do SAM, como Breno, Maila, Cíntia, Frederico, Izabela, Paulo Brasil, Fernando e os já citados, debruçavam-se para ofertar o melhor ensino à distância possível, seja para acadêmicos, residentes e pacientes, ressaltando o “plantão permanente” que o amigo, professor Bernardo de Mattos Viana, oferecia, diante de minha falta de habilidade tecnológica.

A amiga de longa data, secretária do SAM, Marizete Temponi, estava de saída, mantendo-se sempre atenta as nossas demandas técnicas e afetivas, Douglas se mantinha no SAM e Milene Foureaux estava chegando, com simpatia e competências.

As assembleias do SAM eram diferentes, virtuais, mas com tantas dúvidas em como ensinar em momentos de pandemia, era um momento esperado e com possibilidade reencontro, mesmo virtual. Muitos dos professores foram alunos ou meus professores também, em residência médica e pós-graduações invertendo-se e horizontalizando as relações e favorecendo o dinamismo do ensino. As primeiras aulas, à distância, foram psicoterápicas para mim – eu queria falar sobre situações amenas, sobre atividades esportivas e sobre psiquiatria, também logicamente – eram ótimos momentos – mimetizavam-se situações reais de ensino e psiquiatria prática – talvez eu precisasse mais dos alunos do que eles de mim… estava preocupado com a impossibilidade de ver minha mãe, em Juiz de Fora, que infelizmente, veio a falecer, em janeiro de 2021, por quadro neoplásico. A vida estava tumultuada, eu precisava do conforto que o carinho e a imaginação e o prazer que filmes, livros e boas conversas que a minha mulher, médica psiquiatra, que, como Tenente-Coronel do Hospital da Polícia Militar (HPM), Jussara Alvarenga e sua família me proporcionavam (com a chegada do sobrinho ou “neto” Rafinha)…

Jussara conduziu, com sua equipe de também amigos e psiquiatras, um atendimento psiquiátrico em tempos de covid-19 com muita dedicação e eficiência, e, juntos, víamos filmes com meu querido filho Bernardo Nicolato, que tanto me auxiliou, começando a Faculdade de Psicologia; vendo-o estudar e assistir às aulas eu tinha ideias práticas para as aulas e demandas dos alunos do quinto e do nono período. As aulas deveriam ser mais rápidas, mais intensas, com exemplos práticos e mais afetivas… Eu tinha de me manter bem e esperançoso, motivando-o (mas quem me motivava e me acalmava era justamente ele) para seguir em frente, com exercícios físicos e com meu retorno forçado à vida de “basqueteiro”, para que seguíssemos em frente, da melhor forma possível.

Lembro de quando ele saiu comigo pela primeira vez: cidade deserta, estranha, vazia e triste – para vacina (só havia essa), de gripe. Enquanto isso, os fraternos amigos de Santa Maria de Itabira nos recebiam com o maior carinho possível, com casas grandes, com afeto maior ainda, comida boa, feita com carinho (carne moída, panqueca e muito mais): Zaia, Jeane, Nô, Nem, Lyginha, Enilda e toda família, de todos falados, com a injustiça de omissões, pois seriam muitos…).

Encontros comedidos e seguros, com professora Luciene Bruno Vieira, do ICB, com seu marido, com cultura inesgotável, Marco Vinício, e filha Ana Sofia. Hui Lung e família sempre preocupados comigo, o amigo de longa data, Renk, que de Brasília dava informações sobre diversas possibilidades estratégicas no Brasil, os e-mails cruzeirenses do amigo e Professor Helton, do ICB, o carinho inesgotável dos pacientes, da Zilah, da Ana Paula Montanari, da Aline Trevisan, que forneciam estrutura para que eu trabalhasse… e tantos amigos e pacientes – que davam suporte emocional, talvez recíproco, para prosseguirmos, em busca do futuro com uma sensação de normalidade… Conversas diuturnas com minhas irmãs, Alexandra, Andréa, cunhados e sobrinhos, ajudavam, na lembranças de um mundo mais livre, não menos tenso.

No que mudou? Ensino é recíproco, um ensina o outro, um dá suporte para o outro, o professor vira seu amigo, o aluno vira seu professor, o filme discutido com alunos ajuda-nos com nossa ansiedade, o paciente que recebe nosso afeto, na verdade está dando-nos mais afeto ainda, o aluno nos supera e fica melhor que nós, o filho é mais experiente e sábio, a minha mulher é bem mais forte que eu: estamos no mesmo barco.

Rodrigo Nicolato – professor do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG


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