Maria Isabel Toulson Davisson Correia

Aonde vou, procuro divulgar sobre o empoderamento do paciente. Talvez isso facilite alcançarmos melhores resultados na terapia nutricional

Aposentada no Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG, a professora convidada Maria Isabel Toulson Davisson Correia se orgulha de ser referenciada como Titular, a última progressão nas classes de docentes, já que “são poucas mulheres em cirurgia como titulares”. Mas, nos títulos, ela também tem o de mestra pela UFMG, doutora pela USP, pós-doutora pela University of Pittsburgh Medical Center, além de outras honrarias distribuídas entre suas qualificações pessoais e profissionais.

Apesar da extensa trajetória na área de Medicina, especialmente em Cirurgia Geral e Nutrição,  Maria Isabel nunca se imaginou nessa carreira, porque tinha “pavor” de sangue e de hospital. O sonho era ser diplomata. Mas, a angolana, que veio criança para o Brasil, não poderia assumir o cargo destinado excepcionalmente aos brasileiros natos. Só aos 17 anos ela restabeleceu sua meta, que por mais difícil que fosse, teve o auxílio da sua capacidade de se reinventar e redescobrir, qualidades que ela orgulha de carregar até hoje.

Sobre a escolha de Medicina, ela justifica que sempre quis ajudar as pessoas, com o sonho contínuo de mudar o mundo e fazê-lo um lugar melhor. E assim fez.  “Eu brinco que fiz história no Brasil”, comenta Maria Isabel, autora de uma tese que alertou sobre a prevalência da desnutrição nos pacientes internados em hospitais brasileiros, a qual serviu como base e foi citada pelo Ministério de Saúde ao estabelecer portarias sobre terapia nutricional nos hospitais.

A professora comenta que pode se entender por desnutrição o indivíduo que perdeu peso sem querer, em curto período de tempo, relacionado com sua doença e afetando sua funcionalidade – capacidade de fazer atividades físicas habituais como andar, sentar, levantar, etc. Ela acrescenta que, neste estado nutricional, a pessoa também apresenta diminuição das defesas orgânicas, as imunológicas, por isso tem pior capacidade de cicatrização de feridas e a ter complicações infecciosas, além de aumentar o tempo de internação e estarem mais associadas à mortalidade.

A desnutrição dos pacientes internados

As pesquisas da Maria Isabel começaram abordando a desnutrição no ambiente hospitalar, baseado no que ela via no seu dia a dia de cirurgiã. A professora destaca o Inquérito Brasileiro de Avaliação Nutricional Hospitalar (Ibranutri), uma das suas primeiras pesquisas.

Publicado em 2001, o inquérito investigou o estado nutricional dos pacientes internados, por problemas de saúde diversos, em 25 hospitais universitários, filantrópicos e privados do Brasil, distribuídos do norte ao sul do país. O estudo contou com a participação de quatro mil pacientes, dos quais 709 foram avaliados no início da internação e acompanhados até o final dela, seja por alta ou por mortalidade.

(…) constatamos que esses indivíduos, quando desnutridos, morriam mais, tinham mais complicações e ficavam mais tempo internados

A professora explica que o grupo de profissionais que realizou essa avaliação usou técnicas essencialmente clínicas, sem nenhum instrumento, “exatamente para mostrar como é possível realizar o diagnóstico nutricional sem necessidade de nada sofisticado”. “A clínica é algo simples, que será sempre soberana e da qual sou a maior defensora. Então constatamos que esses indivíduos, quando desnutridos, morriam mais, tinham mais complicações e ficavam mais tempo internados”, disse.

Os resultados do Ibranutri mostraram que os indivíduos desnutridos ficam mais suscetíveis a infeções, já que não têm respostas imunológicas adequadas, tornando deficitário o combate a invasão de qualquer microrganismo. Além disso, por ficarem deitados, mais tempo parados, há outras complicações como trombose, embolia e perda aumentada da massa muscular. Quando operados, também não têm a mesma capacidade de cicatrização que o indivíduo bem nutrido.

(…) tratavam-nos com antibióticos mais caros, mas a nutrição necessária não era dada. Essa também foi outra questão avaliada: menos de 15% dos pacientes recebiam alguma forma de terapia nutricional

Em comparação com os pacientes recém-internados, os que estavam no hospital há mais tempo tinham um estado nutricional ainda pior. “Claro que se a pessoa fica no hospital por muito tempo é porque ela está mais doente. E justamente por isso que demandaria melhor cuidado nutricional. Mas o que vimos é que praticamente em nenhum prontuário havia referência ao estado nutricional dos pacientes”, aponta a professora. “Ou seja, tratavam-nos com antibióticos mais caros, mas a nutrição necessária não era dada. Essa também foi outra questão avaliada: menos de 15% dos pacientes recebiam alguma forma de terapia nutricional”, completa.

Ela lembra que além de ser uma dos principais fatores impactantes no número de morte de todas as doenças que levam a internação do paciente, a desnutrição também tem influencia na gestão, por exemplo. “Os pacientes desnutridos acabam tendo mais complicações e ficam mais tempo no hospital, gerando mais custos aos serviços de saúde. Principalmente no Brasil, onde há deficiência de leitos hospitalares, sem dúvida esse é um problema que pode ser revertido se dedicarmos atenção aos pacientes que precisam ser mais bem nutridos”, argumenta.

Ibranutri como referência para o Ministério da Saúde

“O Inquérito Brasileiro de Avaliação Nutricional Hospitalar é citado pelo Ministério da Saúde, pois foi com base nele que mostramos ao governo que esse era o problema mais prevalente nos hospitais no Brasil”, conta Maria Isabel, orgulhosa da sua contribuição ao que considera início de uma grande mudança da realidade.

A partir deles – os dados do Ibranutri-, o Ministério da Saúde se debruçou sobre o problema, soltou as portarias que regulamentam a prática da terapia nutricional no Brasil.

“Até apresentarmos os dados, ainda não se pagava a nutricional enteral. A partir deles, o Ministério da Saúde se debruçou sobre o problema, soltou as portarias que regulamentam a prática da terapia nutricional no Brasil (Portaria Conjunta SE/SAS nº 38 de 29 de setembro de 199), as quais citam o Ibranutri, e começou a pagar pelo serviço”, acrescenta a professora. “Por isso eu falo que fiz história no Brasil e essa pesquisa é um dos meus xodós, porque é aplicada ao interesse público, da comunidade como um todo, mudando políticas públicas”, destaca.

A médica, também autora da pesquisa sobre países da América Latina com a mesma avaliação e os mesmos resultados do Ibranutri (envolvendo quase dez mil pacientes, com exceção de apenas dois países do continente), aponta que somos um exemplo no mundo em termos da lei. Poucos países da América Latina, como Chile, Cuba, Argentina e a Colômbia apresentam legislação sobre terapia nutricional como as estabelecidas do Brasil. A maioria ainda tem essas determinações fragmentadas.

“A lei é o primeiro passo. Mas já há vinte anos, praticamente, das primeiras publicações e ainda não estão na prática”, reflete Maria Isabel. Ela explica que, atualmente, as leis brasileiras determinam aos hospitais que realizam terapia nutricional a terem uma equipe formalmente constituída por pelo menos um médico e outro profissional de saúde, com tempo determinado para atividades dessa equipe.

“Infelizmente entre a lei e a prática há uma distância muito grande. O que não é surpresa, já que o Brasil tem leis perfeitas que não são seguidas. Não só na Medicina”, comenta. “O que vemos é que os hospitais dizem que têm a equipe, mas os profissionais destinados a ela não trabalham como tal, com a interdisciplinaridade entre eles. A qualidade do serviço é muito ruim e não é só em hospitais públicos”, ressalta.

Além disso, a professora esclarece que cada pessoa internada tem que ter uma terapia nutricional de acordo com seu caso. “É obrigatório que, ao chegar ao hospital, seja feita uma triagem nutricional, onde se identifica os fatores de risco para o estado nutricional do paciente”, informa. “Quando ele apresenta fatores de risco, deve ser avaliado e, se considerado desnutrido, deve-se tratar de forma individualizada. Além disso, hoje o mesmo paciente pode precisar de um nutriente A, sendo que amanhã pode necessitar do B, depois dos dois juntos e assim por diante. Ou seja, não é um tratamento estático”, continua.

Desnutrição agravada pelo câncer

Nas pesquisas sobre terapia nutricional, Maria Isabel também avaliou grupos de pacientes internados por motivos específicos, especialmente os com câncer, como os que estão em fila de espera para transplante hepático ou aqueles já transplantados.  “Esse é um grupo que sofre muito com a variação do estado nutricional, ou seja, com a desnutrição. Além disso, depois do transplante passam a ter outro lado do problema: a obesidade”, esclarece.

A professora lembra que a obesidade, mais conhecida e falada que a desnutrição, está associada às doenças cardiovasculares, risco aumentado de diabetes e rejeição do órgão em casos de transplantados. “Mas, o mais agravante são as pessoas obesas e desnutridas – com deficiência de macro e micro nutrientes. Nestes pacientes, o que aumenta é massa gordurosa, mas o músculo continua pequeno, dificultando ainda mais as atividades habituais”, ressalta.

(…) muitos aproveitam disso e dizem que quem tem câncer não pode ser alimentado porque isso também alimentaria o câncer. Na verdade, se você não alimentar o paciente, o câncer vai continuar pegando os poucos nutrientes do organismo hospedeiro.

Ela também tem trabalhos sobre a avaliação nutricional em casos de câncer gastrointestinal e de câncer de mama em mulheres. Maria Isabel alerta que essa doença é outro agravante para a desnutrição, porque compete com o hospedeiro pelos nutrientes. “Infelizmente muitos aproveitam disso e dizem que quem tem câncer não pode ser alimentado porque isso também alimentaria o câncer. Na verdade, se você não alimentar o paciente, o câncer vai continuar pegando os poucos nutrientes do organismo hospedeiro”, alerta.

Empoderar o paciente para que entenda que não é normal emagrecer por estar doente

De acordo com Maria Isabel, a desnutrição dos pacientes internados é uma realidade no Brasil e no mundo, seja em hospitais públicos ou particulares. “Temos dados suficientes que nos permitem lutar contra essa doença, que é a mais prevalente nos hospitais: a desnutrição. Sem dúvidas, desde as primeiras pesquisas, tivemos alguns avanços. Mas como continuo dando aula e convivendo com pessoas dessa área, tenho visto certa preocupação, o que mostra que educação muda cabeças”, adverte.

“Quando comecei, como cirurgiã, os cirurgiões nem sabiam o que era a terapia nutricional ou se preocupavam com isso. Hoje, já podemos ver congressos de cirurgias com mesas específicas sobre o assunto. Então, se está bom? Não está. Estamos a anos disso”, alerta. “Na solução para o problema, o papel da educação é de extrema importância, seja de qualquer nível, do profissional até o empoderamento do paciente. Por isso, meu maior trabalho atualmente é ensinar a população que, se está doente e perdeu peso, tem que pedir para ser avaliado por um especialista”, adverte a professora.

Maria Isabel conta que ensinar o paciente a pedir o médico para ser avaliado quanto ao seu estado nutricional é seu maior objetivo atual. “Do mesmo modo como são conscientizados sobre outubro rosa, por exemplo, deveríamos ensinar às pessoas que perder peso sem querer, porque não esta comendo e está doente, não é normal”, defende. “Chame o médico e procure investigar. Aonde vou, pelos países a fora, eu procuro divulgar sobre o empoderamento do paciente. Talvez isso facilite alcançarmos melhores resultados na terapia nutricional”, conclui.

Redação: Deborah Castro
Edição: Gilberto Boaventura
Fotos: Carol Morena

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