Reflexões sobre o caminho de uma mulher


06 de março de 2015


 

*Tatiana Tscherbakowski Mourão Lourenço, professora do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG

 

O Dia Internacional da Mulher, muito comemorado na antiga União Soviética, me faz refletir sobre minha história como mulher.

Lembro-me da minha casa na infância, uma autêntica Datcha russa (casa de campo, de madeira, utilizada pelos aristocratas russos), numa chácara, em Venda Nova.

Tínhamos uma enorme varanda, que ladeava toda a casa, à beira de um bucólico ribeirão.

O ruído das aguas silenciava os conflitos que estavam submersos, sob os símbolos de riqueza e felicidade.

Minha mãe, linda normalista mineira, que deixou de trabalhar ao se casar, pois o que ela produziria financeiramente era insignificante perto do que o meu pai produzia, passava todas as tardes na linda varanda, à beira do ribeirão, passando as camisas do meu pai.

Todos os dias, eu observava sua tarefa monótona e brincava ao seu redor. Contou-me ela, que certo dia, quando eu tinha dois anos, perguntei-lhe: “Mamãe, mamãe? Quando eu crescer eu vou passar as camisas do meu Dono?”. Ela, linda, sorriu e perguntou-me: “Do seu pai?” Eu respondi: “Não! Do meu marido!”. Aquela frase, contou-me ela, passado muito tempo, trouxe-lhe profunda perturbação. Resolveu voltar a trabalhar como normalista, fez vestibular e uma brilhante carreira até aposentar-se como diretora de uma grande escola pública que ela fundou em Venda Nova, fez política, chegou a ser presa.

Sempre o conflito entre dois símbolos de mulher acompanhou minha família: a da normalista mineira, minha mãe, e a da minha avó paterna, russa, engenheira e professora de aviação militar durante a segunda guerra mundial.

Estudei o primário numa escola pública em Venda Nova. Na época do ginásio, novamente o conflito: minha mãe queria que eu estudasse no Santa Marcelina, colégio particular na Pampulha, para moças finas, que poderia me conduzir a bons contatos e a um “ bom casamento”. Escondido dos meus pais, fiz seleção para o Colégio Municipal do bairro São Cristóvão, que se dedicava mais ao estudo para rapazes talentosos e pobres, terminei o ensino médio no colégio Municipal e entrei para a Faculdade de Medicina da UFMG com dezessete anos.

Passou o tempo… Fui conhecer meus futuros sogros, dois médicos formados na turma de 1952 na Faculdade de Medicina da UFMG. Como sempre, os contratos ocultos e dolorosos, costumam ocorrer nos primeiros encontros. Minha sogra, mulher inteligente e clara disse-me: “eu renunciei a minha carreira de médica para que meu esposo fosse um brilhante Professor da Faculdade de Medicina” (ele foi professor Titular e Pró- Reitor de Pesquisa desta faculdade). Mal sabemos, entretanto, que nossas respostas nos primeiros encontros, também mostram nossa posição nos contratos inconscientes entre as famílias. Respondi-lhe: “eu seria uma pessoa muito infeliz se um dia dissesse isto a uma futura nora! Quero fazer minha própria carreira”. Soube, no dia seguinte, que minha resposta causou profunda perturbação naquela colega, e que no mesmo dia ela procurou uma psiquiatra e psicanalista, esta lhe disse: “ela respondeu o que você sempre sonhou responder”. Minha sogra trabalhou como médica, mesmo após a sua aposentadoria. Desenvolvemos uma cumplicidade amiga que nos acompanhou até a sua morte.

Certo dia, já mãe de dois adolescentes homens, meu filho mais velho, treze anos, estudante do colégio Santo Antônio, entregou-me uma camisa para passar (ato do meu cotidiano); olhei para ele, olhos nos olhos, e disse-lhe: “a partir de hoje não passo mais!”. Ele, extremamente perturbado, perguntou-me: “Mãe? Mãe? Chegou à Revolução Francesa?”

A frase atribuída (alguns historiadores a consideram uma lenda) a Luís XIV rei da França “L’État c’est moi” (O Estado sou eu), não é frase ingênua, desarticulada do conhecimento da Política e Poder. Mesmo se for uma lenda, ela pode mostrar que as relações de dominação são construídas de forma subjetiva e inconsciente, confundindo-se o individuo com Estado. Em períodos pré-revolucionários observa-se, de forma disseminada, uma profunda perturbação, desarticulada e inominada. Sabe-se, algo vai acontecer. Não se sabe o quê, nem como. A tomada da Bastilha não significou a tomada de um local geográfico, significou a queda de um símbolo do poder, da sua forma de exercício e do aparecimento do cidadão. A palavra, sempre vem após, para contar a história.

Criança pequena, uma pergunta inocente revolucionou a vida da minha mãe; uma pergunta inocente do meu filho revolucionou minha relação familiar com meus filhos, para melhor.

Será que, hoje, na Faculdade de Medicina da UFMG, existem professores que passam, simbolicamente, os jalecos? É aterrorizante pensar que a pior dominação é aquela exercida por aqueles que amamos, ou melhor, pensamos amar.

Je suis désolé mon amour, l’Etat ce n’est pas toi (Eu lamento meu amor, o Estado não é você)

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