Seminário debate violência do estado e a participação da sociedade
12 de junho de 2015
Após a exibição do documentário sobre chacinas policiais no Rio de Janeiro, participantes do Seminário de Ética e Direito de Todos à Vida debateram e refletiram sobre a violência no cotidiano
O mesmo grito de clemência de uma multidão pedindo por justiça que dá início ao documentário “À queima roupa” é ecoado por outra multidão na imagem final. O primeiro de 1993 e o outro, de 2013, mostram que a população da periferia continuou, ao longo desses 20 anos, sofrendo com ações violentas da polícia militar e sem a garantia dos seus direitos fundamentais. Diante da exibição de cenas de uma realidade grave, seria possível apontar os culpados e as vítimas? O que fazer para solucionar este sistema falho? Estas e outras questões foram levantadas no Seminário de Ética e Direito de Todos à vida nesta quarta-feira, 10 de junho, a fim de provocar reflexão crítica e a desconstrução de um possível senso comum.
Heloísa Greco, membro do Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania, definiu o documentário como belo e trágico ao trazer a verdade e desmistificar ficções ideológicas. “Fica claro que se trata de um problema estrutural e não episódico. Durante 20 anos as chacinas adquiriram uma periodicidade e uma sistematicidade assustadora. O sistema repressivo se repaginou depois da ditadura e está mais bem estruturado”, defende. “Este Estado denominado como Democrático de Direito tem, na verdade, o Estado Penal como sua essência, declarando uma guerra generalizada aos pobres, com uma política de encarceramento em massa e o genocídio institucionalizado de jovens negros, negras, índios e pobres”, completa.
O professor José Luiz Quadros de Magalhães, das Faculdades de Direito da UFMG e da PUC Minas, deu continuidade à defesa da necessidade de reinventar um novo sistema. “O sistema penal nunca resolveu nenhum problema de violência em nenhum lugar do mundo. Talvez consiga controlar, dependendo dos casos, mas este controle pode ainda ser mais perigoso por dar uma falsa sensação de segurança”, afirma. “O desafio que se coloca hoje é que temos que pensar efetivamente na construção de outra sociedade, de outra economia e de outros direitos. Não dá mais para ficar negociando com o que temos hoje”, argumenta.
A professora Elza Machado de Melo, coordenadora do Mestrado em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência da Faculdade de Medicina UFMG, ainda incluiu outro ponto importante na discussão. “A violência deste Estado camufla e esconde de nós mesmos a violência presente no cotidiano. Ele está intimamente relacionado com a sociedade que também é violenta”, pontua. “Nesta perspectiva não há culpados, tampouco vítimas. Não nos cabe apontar isso. É preciso que vozes múltiplas como aqui, no seminário, se disponham a não aceitar a violência e, assim, lutar pelo direito à ética e de todos à vida”, continua.
Melhorar o sistema ou substituí-lo?
Theresa Jessouroun, diretora do filme exibido, contou suas experiências sociais com as filmagens e destacou o desconhecimento da população sobre como agir diante de uma ação ilegal e/ou de abuso por parte dos policiais. Diante do seu aprendizado e o panorama que pôde vivenciar, ela apontou três mudanças necessárias para que os direitos humanos passem a existir na vida de todos, principalmente para as maiores vítimas, que são os negros e pobres da periferia. “A primeira coisa a se fazer é treinar melhor os policiais porque atualmente eles são treinados para aniquilar o inimigo como se fosse uma guerra. Para fazer este filme eu li muita coisa, vi muitas teses e relatórios que codificam os números dos crimes, mas nenhum deles codifica o que acontece com a sociedade”, relata. “Temos também que nos perguntar por que os crimes cometidos pela polícia não são investigados. É como estes coronéis no filme disseram: existe um comando que nunca é atingido porque sabe que são garantidos pela impunidade”, prossegue. Ela ainda afirma que diante da realidade de que o mundo não vai viver sem drogas, a guerra contra o tráfico é uma guerra perdida que deixa inocentes mortos de todos os lados.
A outra questão seria a desmilitarização da polícia, ou seja, torná-la uma só para que não haja oposição ,como acontece atualmente com a civil tendo melhores salários, mais privilégios e não enfrentando o cotidiano de risco que a militar enfrenta. Esta é uma solução em comum apontada também pelo professor Magalhães que acrescenta como ato de irresponsabilidade defender a redução da maioridade penal. “O Brasil tem mais de 700 mil presos e mais de 350 mil mandatos não cumpridos. Aí temos este, que é talvez o pior Congresso da história, querendo criminalizar tudo. Isto significaria continuar com este sistema que não dá conta de fiscalizar nem de punir, necessitando ainda de mais policiais, promotores, juízes, cadeias e Estado controlando nossas vidas”, expõe.
Diante do número crescente de pessoas no planeta, inclusive em uma velocidade nunca antes atingida, o professor diz que temos duas formas de sobreviver em um planeta superlotado: “Ou se aprende a repartir, criando outra lógica de convivência social; ou pode já começar a adquirir as melhores e maiores armas de fogos e munição que conseguirem”, ironiza. “É indispensável e urgente partimos para a desmilitarização da polícia. A polícia militar é uma incoerência: usa de uma lógica violenta que gera violência, sendo que tem a função de proteção”, argumenta. “Todas as corporações policiais permitem que o mal se instale, civil não é melhor que militar, nem a federal e nem os guardas municipais. É preciso acabar com a toda a polícia e ponto”, completa Heloisa. Embora pareça algo difícil de ser alcançado, Greco diz que a reinvenção de um novo sistema é uma utopia necessária de ser planejada e implantada desde já, para que os resultados possam ir surgindo.
Participação do público
O público que lotou o Salão Nobre da Faculdade de Medicina da UFMG saudou a iniciativa da organização de promover o evento e pôde participar com comentários e questionamentos. A estudante Ana Laura, do 9° período de Medicina da UFMG, ressaltou a oportunidade como importante por ser raro abordar os direitos humanos dentro da Instituição. “Estas pessoas negras e pobres que o filme mostra, quando não mortas, se tornam nossos pacientes. Nas salas de trauma quando as atendemos não há nenhuma relação de empatia, porque não somos estas pessoas e não sabemos como é ser elas. Arrisco a dizer que nenhum de nós teve a casa invadida pela policia militar”, declara. “A pior consequência da divisão destes espaços é quando nós, estudantes de medicina, atendemos um paciente baleado rotulado como traficante. Durante a discussão do caso, em off, é possível ouvir comentários como ‘não sei porque estamos gastando tempo e dinheiro com este paciente’”, contou. “Na ementa do curso de medicina diz que o médico tem que ser um profissional humano e capaz de atuar nas notificações dos determinantes sociais do processo saúde-doença, mas na verdade acabamos nos tornando uma classe médica interlocutora de pautas como a redução da maioridade penal, tornando-se praticamente máquinas sem se lembrar de atuar como humanos”, completa. Segundo ela, a culpa disso também é da academia, que esquece de formar o caráter dos alunos, priorizando apenas a técnica.
Seminário de Ética e Direito de Todos à Vida
O evento fez parte das atividades da Disciplina Seminários de Bioética e foi organizado em conjunto com o Mestrado Profissional em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência e o Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania.