Tabus ainda são entraves para a doação de órgãos


20 de setembro de 2018


Campanha Setembro Verde alerta para a importância de ser doador

Raíssa César*

 

Setembro amarelo, verde, dourado… neste mês, diferentes cores remetem a campanhas que podem salvar vidas. Entre elas, está a campanha Setembro Verde, que tem como objetivo conscientizar sobre a importância da doação de órgãos e tecidos. Para explicar como funciona a doação, falar sobre a sua importância e desmistificar crenças sobre o tema, conversamos com o professor do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG, Charles Simão Filho. Durante nove anos, ele esteve à frente do  MG Transplantes, onde atuou como diretor. Atualmente, Charles desenvolve trabalho como médico cirurgião e na área de ensino. Confira a entrevista seguir:

Arte CCS

Qual a importância de termos um mês para incentivar a doação de órgãos?

Inicialmente, precisamos entender que a doação de órgãos é uma ação estimulada pelas centrais de transplante. No entanto, ela deve ser uma ação da sociedade como um todo, pois se a sociedade não doar, não existe transplante. Este é um mês no qual se concentra a publicidade relacionada à doação. Mas é importante frisar que a campanha sensibiliza, mas não fixa. Não se pode fazer uma campanha apenas um mês do ano, porque as pessoas, em pouco tempo, se esquecem disso. O transplante deve estar sempre na mídia. Ainda assim, a importância desta campanha se dá na conscientização de que o doador deve conversar com sua família. O transplante de órgãos deve ser debatido entre as famílias, porque são elas autorizam a doação.

Quem pode ser doador? Quais órgãos podem ser doados?

Existem três tipos de doador: o doador cadáver, no qual o coração não está mais batendo; o doador em morte encefálica, quando ocorre a parada definitiva e irreversível do encéfalo; e o doador vivo. No caso do doador cadáver, é possível doar, principalmente, tecidos, como córneas, ossos, tendões e válvulas cardíacas. No caso do doador em morte encefálica, os órgãos continuam funcionando durante um curto período de tempo, então pode-se doar os dois rins, o pâncreas, os intestinos, o coração, o fígado e os pulmões. Existem também os doadores vivos, que podem doar um dos rins, parte do pulmão e parte do fígado, que geralmente é destinado às crianças.

O que é necessário para ser doador?

No caso do doador em morte encefálica, a família precisa autorizar a doação. No passado, a pessoa deixava avisado em escrito, mas isso se mostrou completamente ineficaz. Isso porque se um dos membros da família não concordar com a doação, a central de transplante não vai retirar o órgão contra a vontade de um familiar. Hoje trabalhamos com a ideia de que se deve conversar com a família, porque se ela estiver consciente do desejo da pessoa, caso aconteça uma morte encefálica e o paciente for um potencial doador, provavelmente a família não vai criar nenhum tipo de objeção. Para ser doador vivo, há alguns critérios, como doar para um parente de até segundo grau. Caso não tenha relação parental, o desejo deve ser manifestado oficialmente para que se obtenha autorização judicial.

Há resistência das pessoas ou dos familiares para realizar a doação? Por quê?

A resistência se dá por diversos motivos. Convicções religiosas, conflitos familiares, e uma série de coisas irreais que existe no imaginário popular, como a possibilidade de comércio ou tráfico de órgãos, ou de que a doação poderia desfigurar o cadáver. Além disso, há quem pense também que, após diagnosticar uma morte encefálica, a pessoa pode voltar à vida. Mas não existe nenhum caso em que isso tenha acontecido. O diagnóstico de morte encefálica exige um protocolo muito rígido, em que se faz uma série de testes, se repete esses testes após algumas horas, além de exame de imagem para comprovar que não existe mais fluxo sanguíneo no cérebro. Porém, quando essas pessoas são conscientizadas pelas centrais de transplante, felizmente essa resistência vai se dissolvendo. Com isso, o paciente acaba entendendo que a doação é um ato maravilhoso e que pode possibilitar a vida de outras pessoas. De um modo geral, as famílias se sentem bem depois que isso acontece.

De acordo com o Ministério da Saúde, cerca de 87% dos transplantes de órgãos são feitos com recursos públicos, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Como funciona o programa do SUS?

O SUS financia o ato do transplante em si, mas eu acredito que poderíamos ter mais recursos destinados a isso. Existem muitas questões além da operação, como as instalações, os cursos de treinamento que as centrais de transplante são obrigadas a fazer, o investimento em publicidade, entre outros. Os recursos não são suficientes para todas as ações necessárias.

Ainda de acordo com o Ministério da Saúde, há quase 34 mil pacientes ativos na lista de espera por um transplante. Por que ainda há tantas pessoas na fila? Seria uma questão administrativa ou baixo número de doadores?

Isso ocorre por vários motivos. Inicialmente, a maior parte desses receptores apresenta doenças renais associadas à hipertensão e à diabetes. Essas patologias são mais incidentes na humanidade. (Cerca de 23 mil pessoas aguardam pelo transplante de rins, segundo o Ministério da Saúde). Não há como ter um número de doadores suficiente para suprir essa demanda. Além disso, nos últimos oito anos, tivemos uma queda muito significativa nas doações no MG Transplantes, que passou de 14 por milhão para 9 por milhão. A queda pode significar que as campanhas e as ações de conscientização não estão sendo eficazes. O que realmente faz as doações aumentarem é a atuação dos profissionais de saúde dentro dos hospitais e das UTIs, que, ao identificarem um potencial doador, devem procurar e abordar a família. Infelizmente, isso não é feito de forma adequada, uma vez que os gestores hospitalares ainda não exigem que isso seja feito de maneira rotineira e eficaz.

*Redação: Raíssa César – estudante de Jornalismo