Crianças podem desenvolver transtornos mentais na pandemia

Especialista alerta para os cuidados e proteção neste período


21 de setembro de 2020 - , , , , , ,


*Giovana Maldini

Arte com uma foto na lateral esquerda de uma mulher ruiva sorrindo para uma criança que está de costas. Alinhado a direita, há o texto "Como proteger os pequenos do impacto da pandemia?"

Devido à pandemia causada pelo novo coronavírus, atualmente a realidade de muitas crianças é ficar dentro de casa, sem brincar com os amigos ou ir para escola. Esse isolamento físico é a principal medida de proteção contra a covid-19, mas também pode ser fator importante para o aparecimento de transtornos psiquiátricos. Por isso é necessária a atenção ainda maior da família.

“A pandemia impõe um sofrimento psíquico para todas as faixas etárias. Então devemos pensar em como criar fatores de proteção para a saúde mental dos adultos, porque ela também é um fator de proteção para a saúde mental das crianças. Por isso, melhorá-los possibilita que condições pré-existentes não piorem e que não surjam outros adoecimentos”, ressalta Ana Maria Costa da Silva Lopes , professora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG e psiquiatra com concentração na infância e adolescência.

Identificando transtornos mentais na infância

Segundo a professora Ana Maria, com base nas informações do artigo Prevalência de transtornos mentais entre crianças e adolescentes e fatores associados: uma revisão sistemática, “atualmente, estimativas apontam que uma entre quatro a cinco crianças e adolescentes no mundo apresenta algum transtorno mental”.

O termo transtorno mental se refere a qualquer anormalidade, sofrimento ou comprometimento de ordem psicológica e/ou mental. Ana Maria explica que quase sempre é uma disfunção da atividade cerebral, que pode afetar a maneira de um indivíduo se comunicar, o seu comportamento, raciocínio, forma de aprendizado e o humor.

A professora ressalta que esse transtorno pode se alterar ao longo da vida. E, no caso das crianças, esse processo é mais perceptível. Aqueles que se iniciam na infância são classificados como transtornos do neurodesenvolvimento, como deficiências intelectuais, transtornos da comunicação, transtorno do espectro autista, transtorno de déficit de atenção/hiperatividade, transtorno específico de aprendizagem, dentre outros.

“O mais adequado é pensarmos em o que é funcional e o que é disfuncional. Por exemplo, uma criança de 7 anos de idade pode ter um nível de organização das suas coisas pessoais e do ambiente em que vive de uma forma mais rigorosa e isso não ser disfuncional. Pode ser somente um traço, uma particularidade daquela criança. Então, quando a organização é um problema? Quando gera sofrimento, disfuncionalidade. Ou seja, a criança não consegue estar bem se alguém tirar algo do lugar. Isso gera estresse e ansiedade. Em linhas gerais, podemos usar essa referência para identificar se a criança está em sofrimento psíquico”, relata.

É importante que a família acompanhe de perto a funcionalidade da criança, como o sono, hábitos alimentares, interesse pelas brincadeiras e o contato social, que deve ser monitorado para evitar o contágio pelo coronavírus. Caso os familiares percebam alguma alteração no comportamento dos pequenos, como ansiedade, tristeza, agressividade e desinteresse pelas atividades habituais, pode ser um sinal de alerta.

“O fato de a criança estar em casa com os pais não significa, infelizmente, que a qualidade da presença seja satisfatória. A escola, é o segundo espaço social da criança. Por isso, muitas vezes é nesse espaço que a criança manifesta sintomas que apontam para um sofrimento psíquico. Os professores, embora lidem com muitos alunos, têm uma capacidade de percepção apurada de que algo não vai bem com a criança. Nesse sentido, o momento da pandemia exige que os pais estejam mais atentos aos seus filhos, mais próximos, conversem, troquem ideias, brinquem juntos”

Ana Maria Costa da Silva Lopes
Foto de uma criança de costas com uma mochila, seguindo um caminho de terra. Texto: Então devo levar meu filho à escola durante a pandemia?

A decisão da reabertura das escolas será definida pelas autoridades sanitárias quando houver baixos níveis de disseminação viral na comunidade, que se baseia no número médio de transmissão por infectado, na ocupação de leitos de UTI e de enfermaria. Evidente que a escola é o segundo espaço de organização social na vida das crianças, mas se vivemos uma situação que exige o isolamento social como a forma mais eficaz de preservar a vida, nosso papel será pela preservação da saúde física.
A escola deve ser a principal promotora da prevenção em saúde mental, estabelecendo estratégias de conversação, de expressão para além do conteúdo formal. E o retorno das atividades deve acontecer com segurança, sobretudo com vigilância quanto à higiene e ao distanciamento físico.
Segundo os especialistas, se as atividades escolares retornarem antes da transmissão na comunidade alcançar níveis baixos, os casos aumentarão. As escolas podem ser locais de alto risco. Sabemos que há salas de aulas mal ventiladas. Há evidências de que as crianças podem espalhar o vírus para outras pessoas, especialmente para aquelas que vivem na mesma casa. Vários estudos mostram que, uma vez infectadas, as crianças não são menos infecciosas do que os adultos. Se as escolas forem reabertas em áreas com altos níveis de transmissão na comunidade, grandes surtos serão inevitáveis e as mortes ocorrerão na comunidade
Professora Ana Maria Lopes 

Tratamento desde cedo

Caso os pais percebam sinais não habituais de comportamento, é necessário buscar ajuda de um profissional. Ana Maria cita que o pediatra que acompanha a criança pode orientar a família e, se for preciso, indicar uma avaliação e tratamento com o especialista mais indicado. Mas muitas famílias ainda têm preconceito em levar as crianças ao psicólogo, por exemplo, por não aceitar que podem ser diagnosticadas com algum transtorno mental desde cedo.

“Devemos evitar a banalização do uso de diagnósticos psiquiátricos. O sofrimento psíquico ocasionado pela situação da pandemia é generalizado para todas as faixas etárias. Estar atento ao fato de que algo diferente pode acontecer com a criança, alterar o padrão do sono, ficar mais ansiosa ou entristecida é importante. Ela está em desenvolvimento. Então, um episódio de ansiedade, transtorno de humor, como a depressão na infância e adolescência, se bem tratados por profissionais especializados, não perduram para a vida toda. Evidente que cuidar da promoção da saúde mental na infância possibilita uma melhor saúde mental nas outras fases da vida”

Fatores de proteção

Não há formas de prevenir os transtornos mentais, pois, segundo a professora Ana Maria, eles se dão por um processo multifatorial. Mas é possível aumentar os fatores de proteção, como a construção de vínculos entre a criança e a família. “Diante de situações estressoras, é importante buscar a redução dos fatores desencadeantes, propiciando que o estresse não se torne tóxico, ou seja, prejudicial à saúde mental”, alerta. “Procurar ajuda profissional, espaços para que a criança seja escutada e possibilitar o diálogo entre a criança, os pais e cuidadores é essencial”, exemplifica.

A professora ressalta alguns cuidados para aumentar os fatores de proteção das crianças, baseado nas recomendações da Child Trends e do Centro de Treinamento para Trauma Infantil da Universidade de Massachusetts:

1.	Os pais e seus substitutos precisam de oportunidades para promover o próprio bem- estar, através do autocuidado, apoio social, tempo para descanso. E, se necessário, buscar ajuda profissional.
2.	Os pais, cuidadores ou substitutos paternos devem estabelecer limites de forma empática, solidária e atenciosa com a criança. 
3.	Garantir para a criança que as medidas necessárias para a sua proteção e dos familiares sejam providenciadas. 
4.	Distanciamento social não deve significar isolamento social. Promover a conexão da criança com amigos e parentes através de vídeo chamadas, cartas ou desenhos. 
5.	Informar a criança sobre a pandemia em uma linguagem adequada para a idade. 
6.	Limitar a exposição das crianças à cobertura da imprensa, redes sociais e conversas de adultos sobre a pandemia, pois esses canais podem ser inadequados à idade.
7.	Garantir um ambiente físico e emocional seguro, praticando os seguintes passos: tranquilização, manutenção da rotina e autorregulação. A tranquilização exige que o adulto se mantenha tranquilo para transmitir esse sentimento para a criança. A manutenção da rotina proporciona às crianças a sensação de segurança. E os adultos devem apoiar e incentivar a prática da autorregulação infantil, através, de exercícios de respiração, meditação, ou qualquer atividade que reduza o estresse daquela criança, como músicas, jogos e brincadeiras preferidas. 
8.	Estimular a autoeficácia da criança, promovendo atividades que conferem autonomia, como preparar um lanche, se for compatível com a fase de desenvolvimento da criança. 
9.	Enfatizar sentimentos de esperança e positividade. 
10.	Procurar ajuda profissional se persistência de alterações emocionais e comportamentais, ansiedade, agressividade, regressão de marcos do desenvolvimento já adquiridos.
11.	Se necessário, para garantir a segurança da criança, utilizar a “telemedicina" (isto é, atendimento por meio de uma plataforma online). 
Baseado nas recomendações da Child Trends e do Centro de Treinamento para Trauma Infantil da Universidade de Massachusetts.

“A pandemia é uma vivência inédita para todos nós. Então é essencial que a família busque estar próxima, crie momentos de convivência através de atividades lúdicas, tal como: jogos de tabuleiro, cantar, assistir um filme, contar histórias, fazer uma receita de culinária, dividir as tarefas da casa. Além disso, é importante conversar, explicar para a criança em linguagem adequada à sua idade sobre a pandemia, compartilhar os momentos”

Ana Maria Lopes

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*Giovana Maldini – estagiária de jornalismo
Edição: Deborah Castro