Prescrever ou não prescrever?


30 de outubro de 2014


*matéria publicada na edição 41 do jornal Saúde Informa

Médicos psiquiatras comentam o uso e o abuso de medicamentos para a saúde mental

De Elvis Presley a Michael Jackson, atestados de óbitos associados ao abuso de medicamentos psiquiátricos se tornaram mais frequentes nos últimos anos. Relatório divulgado pelo Departamento Internacional de Controle de Narcóticos, ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), indicou que o uso em excesso desses e outros remédios já supera o consumo somado de heroína, cocaína e ecstasy. Mas, pensando na saúde mental do indivíduo, quando, então, recorrer aos medicamentos?

Para o psiquiatra e professor do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG, Rodrigo Nicolato, quadros depressivos e ansiosos que provoquem sofrimento e prejuízo à qualidade de vida, independentemente da gravidade, necessitam de tratamento medicamentoso. “Eles podem trazer consequências danosas para a cognição e memória e para o sistema cardiovascular, levando, inclusive, à possibilidade de suicídio”, justifica.

O aumento de prevalência da depressão, em escala global, preocupa o psiquiatra. Segundo ele, cerca de 50% dos quadros depressivos não são diagnosticados, o que leva a crer que metade dos pacientes não recebe o tratamento adequado.

Por outro lado, o psiquiatra clínico e psicanalista Eudis Garcia, professor aposentado do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG, enumera algumas normas clínicas básicas que, segundo ele, os médicos andam desconsiderando: quando a boca cala, o corpo fala; dores da alma não aparecem em exames; depressão e ansiedade são motivos da maioria das consultas médicas. “As queixas hipocondríacas e os transtornos psicossomáticos são sinais corporais de ansiedade. Além disso, tristeza e ansiedade são reações naturais de pessoas em conflitos intrapsíquicos e interpessoais, tratáveis com condutas de apoio e psicoterapias”, completa.

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Foto: reprodução/internet

Tratamento
Se Garcia critica a atual relação entre médico e paciente, muitas vezes ditada pela substituição de uma boa entrevista por pílulas que combatem os sintomas, Rodrigo Nicolato também é reticente em medicar a ansiedade situacional que não indique um transtorno passível de tratamento. Estudos indicam a psicoterapia interpessoal e a cognitivo-comportamental, além da psicoterapia que provoca resposta, como substitutos de psicofármacos em quadros mais leves. Exercícios físicos, terapia ocupacional e assistência social, dentre outras atividades, também podem atuar como fatores preventivos.

“Talvez técnicas de relaxamento, esportes, livros, filmes e jogos poderiam retardar ou mesmo impedir quadros psiquiátricos menos graves em pessoas com menos predisposição genética”, admite Nicolato. O professor, no entanto, considera a terapia combinada – à base de psicofármacos e psicoterapia – como ideal para esses casos.

Sobre os serviços de saúde do país, Eudis Garcia pondera que a grande demanda inviabiliza uma psicoterapia formal. “O que se propõe é que os agentes de saúde tenham um preparo básico para um atendimento psicossocial e para diferenciar os pacientes com quadros mais graves dos que necessitam somente de intervenções psicológicas”.

Para Nicolato, não é só remédio que pode fazer mal – terapias psicológicas e psicoterápicas podem causar prejuízos se forem mal conduzidas ou realizadas por profissionais não capacitados. “Logicamente, devemos nos afastar dos dogmas: de que remédio e psicoterapia não servem para nada ou que servem para tudo”, resume.

Medicamentos
Quadros ansiosos crônicos e depressivos leves podem exigir, segundo Rodrigo Nicolato, a associação entre antidepressivos serotonérgicos, que influenciam na ação da serotonina (molécula envolvida na comunicação entre neurônios), e ansiolíticos benzodiazepínicos, grupo que inclui medicamentos sedativos ou calmantes.

Em geral, os serotonérgicos apresentam uma latência de 15 a 30 dias quanto à redução de sintomas ansiosos, mas podem provocar sintomas paradoxais em alguns pacientes, que seriam tratados com um benzodiazepínico, caso do Rivotril.

Já Eudis Garcia pensa que os psicofármacos são mais eficazes em situações de esquizofrenia, transtorno bipolar e depressão grave, uma vez que criam condições mais favoráveis para a psicoterapia na fase de manutenção do tratamento. “O que não se justifica é o uso apenas sintomático desses fármacos a longo prazo, sem uma intervenção psicoterapêutica ou no ambiente social que trate as causas da ansiedade e amenize as demandas excessivas e estressantes do meio externo”, ressalta.

E em relação à prescrição inadequada dos benzodiazepínicos ou a automedicação – o Brasil lidera a prática–, Nicolato reconhece a possibilidade de exagero, mas não subestima a importância desses medicamentos. “Não observo a mesma recriminação dos benzodiazepínicos à cerveja, ao vinho. Quantos acidentes automobilísticos ocorrem por abuso de álcool?”, questiona.

Na opinião de Garcia, a automedicação revela a mesma crença mágica no efeito de medicamentos, que leva os médicos a descuidarem da interação interpessoal nas consultas, além da dificuldade de acesso aos profissionais de saúde e de uma descrença em consequência de consultas anteriores que se resumiram a meros pedidos de exames. “Não é preciso ser psicanalista para transformar cada entrevista em uma relação terapêutica”, avalia.