Ana Cristina Simões e Silva

Escolhi a pediatria porque quando se faz algo, os efeitos são grandes. Você atua com o futuro. Assim, tem-se a obrigação de mudar a história natural das doenças

Referência na área de nefrologia pediátrica, a  professora Titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG, Ana Cristina Simões e Silva, já publicou mais de 200 artigos, orientou quase 40 trabalhos de Pós-Graduação, incluindo teses e dissertações, e é líder do Grupo de Pesquisa Nefrologia Pediátrica junto ao CNPq.

Estar à frente de pesquisas de referência na área é consequência do seu desejo de mudar perspectivas de pacientes tão importantes. “Escolhi a pediatria porque quando se faz algo, os efeitos são grandes. Você atua com o futuro. Assim, tem-se a obrigação de mudar a história natural das doenças. Quando muda, o impacto é enorme”, destaca Ana Cristina.

Nessa perspectiva, ela desenvolve, principalmente, pesquisas em duas linhas: malformações dos rins e do trato urinário e síndrome nefrótica. Em relação à primeira, o destaque maior está no estudo feito em colaboração internacional, liderado por um pesquisador da Universidade de Columbia, em que foram captadas amostras de pacientes com diversas malformações dos rins e do trato urinário, da Europa, Ásia, Estados Unidos, Canadá e da América do sul, sendo a Faculdade de Medicina da UFMG o único centro sul-americano colaborativo.

Nesse estudo, avaliou-se um grande número de pacientes para traçar um perfil conforme o tipo de malformação e alterações genéticas. “Isso com certeza tem implicação no prognóstico, em como essas crianças vão evoluir de acordo com as malformações. Esse estudo sairá, em breve, na Nature Genetics, revista muito importante da área da genética, e acreditamos que terá grande impacto na literatura”, comenta a professora.

Abre-se uma perspectiva de tratamento para esses pacientes, utilizando substâncias que ativam essa enzima [formadora da angiotensina-(1-7)]

Já sobre a síndrome nefrótica, Ana Cristina destaca sua pesquisa com pacientes que apresentam uma quantidade pequena da enzima formadora da angiotensina 1-7, peptídeo parte do sistema renina angiotensina. Entre várias funções, o peptídeo atua como vasodilatador e é tema recorrente dos estudos da especialista. “Abre-se uma perspectiva de tratamento para esses pacientes, utilizando substâncias que ativam essa enzima. Já há algumas que fazem isso em animais e que podem ser traduzidas para a área clínica”, conta.

“Isso é importante, porque torna possível mudar o curso dessa doença muito comum em crianças e que pode evoluir para uma doença renal crônica terminal. Mudar isso é de extrema relevância. Alguém que iria viver cinco ou seis anos, por exemplo, pode passar a viver 20 ou 30. Não há preço, nem para a família dessas crianças, nem para nós que cuidamos delas”, continua.

Angiotensina-(1-7) e sua marca em pesquisas inéditas

Ana Cristina Simões e Silva conta que, antes, o sistema renina angiotensina – um sistema de proteínas produzidas no corpo – era considerado como formado por basicamente três peptídeos. Mas esse conhecimento clássico foi transformado com as descobertas dos últimos 30 anos, com novas moléculas para esse sistema, bem como novas enzimas e novos receptores. “Nessa história, um novo peptídio chamado angiotensina-(1-7) foi descoberto, com participação do professor do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, Robson Augusto Souza dos Santos, que me orientou no mestrado”, afirma Ana Cristina.

“Quando voltou para o Brasil, ele permaneceu com seu grande interesse pela área, principalmente focado nos efeitos biológicos dessa angiotensina, como em ações cardiovasculares – coração e vasos sanguíneos. Então, eu propus estudar as funções renais da angiotensina-(1-7), já que tinha interesse na área por ter feito iniciação científica em nefrologia pediátrica”, conta.

Foi, então, que a pesquisadora conseguiu caracterizar várias ações renais da angiotensina em questão, estudando seus efeitos sobre a filtração glomerular e reabsorção de água e eletrólitos, através do uso de animais de experimentação. Essa foi uma das pesquisas inéditas na literatura mundial que Ana Cristina Simões leva no currículo, com possível impacto prático no tratamento de pacientes.

Conseguimos descobrir um receptor em que a angiotensina-(1-7) se ligava e fazia seus efeitos, tanto no coração, no rim, cérebro, fígado e outros tecidos

Ela também pôde participar de forma direta da descoberta do receptor da angiotensina-(1-7), até então não relatada em outros estudos, cujos resultados tiveram mais de mil citações na literatura. “Conseguimos descobrir um receptor, cujo nome é ‘Mas’, em que a angiotensina-(1-7) se ligava e fazia seus efeitos, tanto no coração, no rim, cérebro, fígado e outros tecidos”, relata. “Essa é uma descoberta importante porque quando se conhece o receptor, é possível fazer remédios, já que se sabe como estimular ou bloquear esse receptor, mudando os efeitos da substância no corpo”, explica.

Pesquisa e prática médica

Costumo falar com meus alunos que me tornei uma médica muito melhor depois que trabalhei com pesquisa, porque tenho capacidade mais crítica e analítica

“Precisamos muito de pesquisas para vencer os problemas da própria clínica. Eu costumo falar com meus alunos que me tornei uma médica muito melhor depois que trabalhei com pesquisa, porque tenho capacidade mais crítica e analítica. Tento analisar os problemas além das aparências, sempre questionando”, argumenta Ana Cristina. “Isso muda a prática clínica. É uma via de mão dupla. As dúvidas que tenho como médica estimulam as ideias que tenho enquanto pesquisadora. Com as respostas que obtenho, eu tento, na medida do possível, respeitando o tempo necessário para essa transferência, levar mais benefício para o paciente, nem que seja em uma compreensão melhor da sua doença”, completa.

Foi com esse objetivo que a professora deu continuidade à sua descoberta dos efeitos da angiotensina-(1-7) nos rins de animais de experimentação durante seu doutorado em Pediatria. O objetivo era traduzir os resultados para pacientes. “Quis unir minha formação médica e clínica com minha formação em pesquisa, tentando estudar como essas moléculas estariam no sangue de pessoas. No caso, eram crianças com hipertensão e com doença renal crônica”, informa.

Na ocasião levantamos uma hipótese de que, nessas situações de doença, a angiotensina-(1-7) talvez não agisse adequadamente

“Pude verificar, por exemplo, que os pacientes que tinha hipertensão chamada primária ou essencial tinham um aumento isolado da angiotensina-(1-7), enquanto as outras angiotensinas estavam em níveis de crianças normais. Já os com doença renal crônica, tinham um aumento de todas as moléculas do sistema renina angiotensina”, discorre Ana Cristina. “Na ocasião levantamos uma hipótese de que, nessas situações de doença, a angiotensina-(1-7) talvez não agisse adequadamente. Criamos a hipóteses de que talvez os pacientes com doença renal crônica tivessem menos receptores ou um funcionamento anormal do receptor ‘Mas’”, continua.

Embora não fosse possível comprovar, por se tratar de humanos e não ser possível fazer todos os procedimentos necessários, as hipóteses foram baseadas em vários estudos com modelos animais das doenças em questão.

O desafio para além da pediatria

Ledo engano quem acha que criança não entende as coisas

Para Ana Cristina Simões, a Pediatria recebe um diferencial justamente pelos seus pacientes. O gosto de trabalhar na área é justificado com o desafio de desvendar enigmas e mistérios. Isso porque, para ela, ao examinar uma criança, é preciso descobrir sobre seu quadro e conseguir explicar a ela o que está acontecendo. “Ledo engano quem acha que criança não entende as coisas. Por exemplo, com pacientes que detectamos mutações, nós explicamos que o que eles têm e sentem são por tais e tais motivos. Assim, por tornar mais concreto o que parecia abstrato, acabam aderindo melhor ao tratamento”, ressalta.

“Um paciente uma vez me disse: ‘o que mais gosto em você é que quando você vai conversar comigo você abaixa para me olhar no olho’. Isso foi muito legal, porque eu nem percebia. Então a gente fica do tamanho deles e explica com palavras conforme a idade para que entendam. Assim viram muito mais parceiros no tratamento do que qualquer paciente adulto”, destaca a pediatra.

Além disso, ela afirma que adora a sinceridade das crianças e o vínculo que estabelecem, “o que é muito difícil de fazer com adulto”. “É um vínculo sincero, forte e de muita confiança. Inclusive, como tenho muito tempo com pacientes pediátricos, eles estão virando adultos e não querem mudar de médico por causa desse vínculo estabelecido”, comenta.

Ainda dentro da linha do sistema renina angiotensina, foi possível colaborar com pesquisadores de outras áreas para estudar a atuação dessas moléculas em doenças de outras naturezas

Mas, ao mesmo tempo, a professora e pesquisadora se diz movida por desafios. Palavra recorrente em sua trajetória. Por isso, ela também não se restringe à pediatria ou nefrologia. “Ainda dentro da linha do sistema renina angiotensina, foi possível colaborar com pesquisadores de outras áreas para estudar a atuação dessas moléculas em doenças de outras naturezas, como as doenças hepáticas, cardiovasculares, diabetes e, mais recentemente, nas doenças neurodegenerativas”, conta.

Esta última parceria está sendo realizada junto ao professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade, Antônio Lucio Teixeira, que está na Universidade do Texas, com o qual a Faculdade de Medicina tem convênio formal para desenvolver pesquisas sobre as moléculas do sistema renina angiotensina em pacientes com doença de Alzheimer, doença de Huntington e Parkinson. “Analisando o funcionamento dessas moléculas, abre-se a possibilidade de novas perspectivas terapêuticas para essas doenças. Alguns estudos na literatura, por exemplo, mostram que pacientes que tomam, por outros motivos, inibidores da enzima conversora ou bloqueadores da angiotensina II e têm doença de Alzheimer acabam tendo uma piora mais lenta da doença”, informa.

Pensando no contexto do nosso país e da universidade pública, acho que [a pesquisa] é uma obrigação

“Ou seja, parece que esses fármacos, que não foram usados para tal, protegeram da piora neurológica, de alguma forma. Assim, propomos entender mais como isso acontece e, quem sabe, realizar um ensaio clínico usando esses medicamentos, de forma controlada e equilibrada nesses pacientes, para analisar se teriam mesmo algum benefício”, explica. “Além disso, poderia abrir a possibilidade de futuras drogas que influenciam na via da angiotensina- (1-7), em sua formação e sua ligação ao receptor Mas”, ressalta a professora. Para ela, a pesquisa tem um papel muito importante: “É algo que adoro fazer. E, pensando no contexto do nosso país e da universidade pública, acho que é uma obrigação”, pontua.

Redação: Deborah Castro
Fotos: Carol Morena

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