Dirceu Greco

A Aids evidenciou que as pessoas são únicas e têm o direito de serem tratadas de maneira adequada, sem julgamentos e com respeito às suas individualidades

O mais recente dos docentes da Faculdade de Medicina da UFMG a receber o título de Professor Emérito da Universidade, Dirceu Bartolomeu Greco, dedicou os últimos quase 40 anos ao ensino, pesquisa e extensão na Instituição. Ainda que aposentado, permanece atuando no Departamento de Clínica Médica da Faculdade, no qual já foi chefe por dois mandatos.

A trajetória do professor é ligada especialmente a três áreas: doenças infecciosas e parasitárias, imunologia clínica e bioética. A partir delas, ocupou cargos que vão além da UFMG, como diretorias, comissões e consultorias no Ministério da Saúde sobre atividades ligadas às Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), em especial o HIV/Aids.

Uma epidemia gravíssima, com alta mortalidade e que carregava muito preconceito, mas que trouxe à tona discussões que não eram feitas na época na intensidade necessária

De acordo com Dirceu, o início do trabalho com a Aids foi quase natural. “Quando a epidemia chegou ao país, tinha claro que a Faculdade, e mais especificamente o Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias, do qual era coordenador à época, deveria ser parte integrante de seu enfrentamento”, conta. “A Aids realmente teve um grande impacto na saúde pública global. Uma epidemia gravíssima, com alta mortalidade e que carregava muito preconceito, mas que trouxe à tona discussões que não eram feitas na época na intensidade necessária: sexualidade; morte, principalmente de jovens; preconceito; discriminação e o direito ao acesso a cuidados de saúde adequados, entre outros”, continua.

Dirceu enfatiza que apesar da gravidade da epidemia, houve resultados positivos para a saúde de modo geral: “a Aids evidenciou que as pessoas são únicas e têm o direito de serem tratadas de maneira adequada, sem julgamentos e com respeito às suas individualidades e especificidades”. “A Aids mudou os paradigmas dos comportamentos pessoais de forma intensa, inclusive sobre o respeito ao paciente, que já era algo da nossa obrigação como profissionais de saúde, mas que foram reforçadas. Ela desnudou a necessidade de direcionar nossa preocupação à pessoa, e não ao agente da doença ou à própria doença. Cada um é único, tem decisões únicas e medos específicos”, afirma.

Aids: atendimento e pesquisa

A Faculdade de Medicina e o Hospital das Clínicas da UFMG estiveram entre as instituições pioneiras no país em estudos e acompanhamento de pacientes vivendo com HIV. Inclusive, o Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias do HC foi o primeiro em atender e tratar essa população. Dirceu lembra que a primeira pesquisa que coordenou, com significativo impacto na área, teve o objetivo de avaliar a risco da infecção em crianças e adolescentes em situação de rua.

Embora houvesse pouquíssimos adolescentes infectados, já que a prevalência do HIV em Belo Horizonte era baixa, o risco para infecções sexualmente transmissíveis era enorme

Realizada com a Universidade Johns Hopkins dos Estados Unidos, o estudo contribuiu com o conhecimento do risco acrescido nesta população, na busca de medidas preventivas mais eficazes, além de propiciar a qualificação de equipe multiprofissional na UFMG. “Era interessante porque havia muitas dúvidas na época – anos 90 – e tivemos resultados muito preocupantes. Embora houvesse pouquíssimos adolescentes infectados, já que a prevalência do HIV em Belo Horizonte era baixa, o risco para infecções sexualmente transmissíveis era enorme”, aponta Greco.

Dessa forma, foi possível constatar que pessoas em situação de rua são mais vulneráveis do que a população geral em relação ao risco para HIV/Aids. O professor acrescenta que, com este estudo, foi expandida a equipe multidisciplinar e multiprofissional e também a estrutura laboratorial. “Na época, participamos de edital internacional com a interveniência do Ministério da Saúde e o Serviço DIP/Disciplina DIP foi estabelecido como Centro de Vacinas anti-HIV da UFMG”.

Com isso, surgiu o Projeto Horizonte (1994), estudo de coorte para avaliar diversos aspectos da infecção pelo HIV entre homens que fazem sexo com outros homens (HSH). “Desde 2017 estamos com outros dois grandes projetos em andamento. Um é o  ensaio clínico de fase II, que compara a equivalência de dois medicamentos de Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP), sendo um importado e outro nacional, para evidenciar a possibilidade da alternativa no uso”, comenta Greco.

Se demonstrado que a medicação fabricada nacionalmente é tão eficaz quanto à importada, será possível contribuir para a sustentabilidade do programa de Aids do Ministério da Saúde, pois o preço da medicação nacional tende a ser menor que o importado, reforça a produção nacional e não está sujeito a patente.

O outro projeto também coordenado pelo professor, ainda em fase de implantação, é multicêntrico nacional (UFMG, USP e UFBA), conta com investimento de órgão ligado a Organização Mundial de Saúde e vai avaliar como estão os adolescentes em relação às questões de risco ao HIV/Aids e se é indicada a utilização da (PrEP) por eles.

De acordo com Dirceu, “este estudo com adolescentes, denominado PrEP 15 19, é mais complexo, porque são pessoas mais difíceis de acessar, principalmente os adolescentes em vulnerabilidade social”. Entre as justificativas para avaliar a PrEP nesta faixa etária, o professor destaca a maior incidência da infecção pelo HIV entre adolescentes masculinos HSH, a maior dificuldade de negociação do uso da camisinha e a complementariedade da PrEP em prevenção combinada.

O método preventivo mais estudado, simples e eficaz é o uso da camisinha. Usar medicamento parece que é mais fácil, mas exige que se tome todos os dias, tem feitos colaterais e não protege contra outras infecções

“É importante dizer que o método preventivo mais estudado, simples e eficaz é o uso da camisinha. Usar medicamento parece que é mais fácil, mas exige que se tome todos os dias, tem feitos colaterais e não protege contra outras infecções sexualmente transmissíveis”, enfatiza. “Há críticas quanto aos riscos inerentes à medicalização da prevenção e eu me incluo entre os que assim pensam, mas concordo com sua utilização e disponibilização para situações específicas de risco acrescido. Vale lembrar que a PrEP é indicada junto ao uso do preservativo”, continua. O professor cita como com maior risco os HSH, pessoas trans, profissionais de sexo, pares sorodiscordantes e quem tem dificuldade na negociação do uso do preservativo.

Pesquisar para construir políticas públicas de saúde

A implementação da prevenção, cuidados e tratamento realmente alcançaram o resultado atual graças à capilaridade do Sistema e ao fornecimento de insumos e medicamentos

Ainda que a epidemia tenha surgido antes da implantação do SUS, as pesquisas, a implementação da prevenção, cuidados e tratamento realmente alcançaram o resultado atual graças à capilaridade do Sistema e ao fornecimento de insumos e medicamentos”, defende Greco. “Todos nossos estudos estão dentro e foram realizados para o sistema de saúde pública do Brasil. Na parte de prevenção, a mais complexa, será necessário expandir a discussão da sexualidade nos diversos níveis do ensino”, completa.

“Quando se pergunta aos jovens como fazem para prevenir, ainda há respostas como escolher certo os parceiros ou ter a certeza da fidelidade”. Para Dirceu, assim como as pessoas se mostram preocupadas com o cigarro, por exemplo, em que não julgam a outra por tomar a decisão mais segura para garantir sua saúde, era preciso ter a mesma percepção em relação ao uso da camisinha.

“Algumas pessoas que namoram, por exemplo, quando pedem o uso do preservativo, o parceiro ou parceira começa a questionar se acabou o amor ou a confiança. É preciso inserir, com seriedade, a questão da sexualidade, da diversidade, dos preconceitos e a prevenção”, enfatiza. “Alguns até negociam os riscos, mas não é comum. Sem fazer julgamento, o sexo tornou-se mais fácil, mais frequente e, muitas vezes, casual. Isso aumenta a probabilidade do contato com infecções sexualmente transmissíveis ou com a ocorrência de gravidez indesejada”, aponta.

A pesquisa é parte de um processo de crescimento que facilita a extensão e pode melhorar o ensino. E um dos seus papéis fundamentais na nossa área é ser útil e contribuir para melhorar a saúde pública

Para Dirceu, pesquisa na universidade tem o papel de ser complemento ao ensino e a extensão. “A pesquisa é parte de um processo de crescimento que facilita a extensão e pode melhorar o ensino. E um dos seus papéis fundamentais na nossa área é ser útil e contribuir para melhorar a saúde pública”, discorre. “Mas como transformar o conhecimento em prática? Por isso será muito importante o projeto PrEP envolvendo adolescentes, lembrando que a maior prevalência do risco está hoje entre 15 e 24 anos”, continua.

Ética além da ciência

Dirceu, enquanto pró-reitor de Pós-Graduação da UFMG (1994-1998) foi responsável pelo estabelecimento, em 1997, do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade (Coep UFMG), sendo também o seu primeiro presidente. Na sua trajetória sempre atuou como representante ou membro de órgãos nacionais e internacionais relacionados com as doenças infecciosas e com a bioética.

Atualmente ele dá destaque a seu papel como presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (2017-2019) além de sua atividade como membro do Comitê Internacional de Bioética do UNESCO-Paris (2018-2021). “A bioética esteve presente desde o começo de minha vida profissional e, nela, tenho cada vez mais atuado. Recentemente, inclusive, estive em dois importantes posicionamentos da SBB”, conta.

Um desses foi em agosto de 2018 representando a Sociedade, em audiência pública no Supremo Tribunal Federal, com outras 48 entidades convocada pela ministra Rosa Weber, sobre a “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442”, a qual questiona os artigos que criminalizam a mulher que praticou o aborto. “A SBB foi aceita e assumiu posição contra a prisão dessas mulheres, tendo como argumento primordial a defesa da saúde pública de um país onde cerca de 400.000 abortos clandestinos são realizados anualmente, a maioria em condições insalubres e arriscadas”, informa.  

Além disso, com pouco mais de uma semana para as decisões do segundo turno das eleições para a presidência do Brasil deste ano, a SBB posicionou-se a favor da democracia e contra todo e qualquer posicionamento que afrontasse os direitos humanos. “Estar presente em uma situação com riscos de agressão aos direitos humanos ou de preconceito e discriminação pode te atingir de diversas maneiras. Uma das possibilidades é, por exemplo, ser agredido por estar cuidando de pessoas excluídas ou vistas preconceituosamente pela sociedade ou por defender os direitos humanos”, comenta Greco.

Como bem disse Darcy Ribeiro: só há duas opções nesta vida, se resignar ou se indignar. E eu não vou nunca resignar

“Mas não vejo isto como problema, pois acredito que nessas situações o certo é participar junto com os atingidos, buscando protegê-los das agressões. Ou como bem disse Darcy Ribeiro: só há duas opções nesta vida, se resignar ou se indignar. E eu não vou nunca resignar”, afirma. “Além disso, aprendi muito com as pessoas vivendo com HIV, resistentes e resilientes, que lutavam e lutam contra o preconceito e a discriminação, levantando a voz na luta pelos seus direitos de receber insumos para diagnóstico, prevenção e tratamento”.

Acredito que a justiça só será realmente alcançada quando aqueles injustiçados se emanciparem para reivindicar e lutar por seus direitos

Cada vez que era questionado sobre a internação de pacientes vivendo com HIV na época em que o HC não as permitia, Dirceu afirma que aquela aparente violência não o atingia, mas o fazia, mais intensamente, reivindicar para que aqueles violentados pelo impedimento fossem protegidos. “Para terminar, se alguém me pedir um conselho diria que será necessário que nos unamos para reivindicar nossos direitos e nunca esperar que alguém lute por você. Em relação ao enfrentamento das injustiças, acredito que a justiça só será realmente alcançada quando aqueles injustiçados se emanciparem para reivindicar e lutar por seus direitos”, conclui.

Sobre Dirceu

Dirceu Greco é médico e doutor em Medicina Tropical pela UFMG, com especialização em Imunologia Clínica pela Universidade Estadual de Nova York e pela Universidade de Londres. Participou intensamente e foi o primeiro coordenador do Centro de Pesquisa Clínica do Hospital das Clínicas da UFMG.

Como professor da Faculdade de Medicina da UFMG atuou em diversas disciplinas da graduação e da pós. Nesta orientou ou coorientou 31 dissertações de mestrado e 22 teses de doutorado. Muitos eram ou se tornaram docentes e pesquisadores, tanto na UFMG quanto em outras instituições de ensino superior.

Ele ainda participa ou já participou de diversas comissões ou grupos de trabalho internacionais, tanto sobre doenças infecciosas quanto bioética. Entre elas a Associação Médica Mundial, Opas-OMS, Unaids, Unesco, CIOMS, Unitaid e Comissão para o Estudo de Bioética da Presidência dos EUA.

Redação: Deborah Castro
Fotos: Carol Morena

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