Testemunhar o surgimento de uma doença com proporções globais e contribuir para a geração de conhecimentos que culminam em sua potencial erradicação é fantástico
Natural de Belo Horizonte, o caçula de seis irmãos, Jorge Andrade Pinto, decidiu seguir a profissão do pai, também médico. A influência veio de casa e, desde muito novo, nunca teve dúvidas quanto à carreira.
Formou-se em 1986 na Faculdade de Medicina da UFMG, onde também realizou o mestrado e o doutorado. Em 1993, após dois anos e meio de estudos nas universidades de Miami e Johns Hopkins nos EUA, foi aprovado em primeiro lugar no concurso para professor assistente no Departamento de Pediatria da Faculdade, onde, atualmente, é Titular.
Jorge Pinto também é chefe do Serviço de Imunologia do Hospital das Clínicas (HC) da UFMG, consultor da Organização Mundial da Saúde, desde 2004, e membro de diversos comitês nacionais e internacionais sobre Aids em crianças, adolescentes e gestantes. Ao todo, já orientou 51 dissertações e teses e tem mais de 120 artigos publicados nos principais periódicos da área médica. O gosto pelo tema veio ainda na época da graduação, quando era monitor do grupo de imunologia e doenças infecciosas do Departamento de Pediatria.
Em 1988 atendi as primeiras crianças internadas no CGP e isso descortinou um novo cenário na imunologia pediátrica, sendo um grande estímulo para quem já tinha interesse nessa área
O período da residência médica, realizada no Centro Geral de Pediatria (CGP) do Hospital Infantil João Paulo II, no final da década de 1980, coincidiu com os primeiros casos de Aids pediátrica no Brasil. “Em 1988 atendi as primeiras crianças internadas no CGP e isso descortinou um novo cenário na imunologia pediátrica, sendo um grande estímulo para quem já tinha interesse nessa área”, conta.
Estudo pioneiro
O Serviço de HIV/Aids do HC-UFMG, criado em 1985, foi um dos primeiros centros brasileiros a estudar e intervir na transmissão vertical do HIV. “A oportunidade de testemunhar o surgimento de uma doença com proporções globais e contribuir para a geração de conhecimentos que culminam em sua potencial erradicação é fantástico”, argumenta Jorge Pinto.
Logo depois, em 1989, foi implantado o serviço Pediátrico, composto por profissionais da UFMG e da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), começando com pequeno número de crianças e adolescentes hemofílicos contaminados por via transfusional. “O número de casos por transmissão vertical aumentou rapidamente no início da década de 1990. Sem avanços significativos na terapia, a mortalidade à época era muito elevada”, lembra Jorge Pinto.
De acordo com o professor, em 1994, foi demonstrado que a zidovudina (AZT), uma das primeiras drogas antirretrovirais a serem licenciadas, era eficiente no bloqueio da transmissão vertical. Houve, então, a partir dessa época, uma ênfase em estudos internacionais para comprovar a eficácia dessa intervenção.
As mulheres que recebiam o AZT tinham redução de cerca de 70% na taxa de transmissão. Esse foi um indício de que estávamos na direção certa
O método foi avaliado entre as gestantes atendidas no serviço do HC, em um estudo observacional, comprovando a eficácia da droga. “As mulheres que recebiam o AZT tinham redução de cerca de 70% na taxa de transmissão. Esse foi um indício de que estávamos na direção certa”, avalia.
Nessa época, tiveram impulso os estudos sobre os mecanismos envolvidos na transmissão vertical do HIV em crianças. “Após comprovarmos a eficácia do AZT, fizemos outros estudos avaliando a via de parto, a condução do parto, a forma como a gestante chegava ao final da gravidez, no ponto de vista virológico e imunológico. Também houve a comprovação de que o leite materno transmitia o HIV”, comenta.
No serviço do HC/UFMG, as taxas de transmissão vertical do HIV têm permanecido abaixo de 1% nos últimos 10 anos
Entre meados da década de 1990 até o início dos anos 2000, acumularam-se vários conhecimentos sobre o tema de maneira muito rápida. Já no novo século, houve um controle relativo da transmissão vertical e uma queda do número de novos casos em crianças. “Isso foi um fenômeno que afetou globalmente os países com acesso ao tratamento antirretroviral. No Brasil, houve queda expressiva da taxa de transmissão. O fato é que aqui, no serviço do HC/UFMG, as taxas de transmissão vertical do HIV têm permanecido abaixo de 1% nos últimos 10 anos” relata.
Acompanhando o desenvolvimento da doença
Para o professor, esse tipo de estudo se torna ainda mais importante quando se tem a oportunidade de participar do processo do início ao fim. “É uma satisfação muito grande, do ponto de vista intelectual e do acadêmico. Nós estamos vivenciando o fim da transmissão vertical”, comenta.
Além da Pediatria, o Serviço do HC/UFMG-PBH conta com profissionais da ginecologia/obstetrícia, hebiatria, psiquiatria, enfermagem, psicologia, serviço social, odontologia, farmácia, nutrição, patologia clínica e epidemiologia. “É uma equipe verdadeiramente multidisciplinar que presta assistência integral às crianças, adolescentes e gestantes afetadas pelo HIV”, declara. Atuando nesse Serviço, Jorge Pinto pôde acompanhar diversas situações ao longo dos anos.
Ele lembra que, nos primeiros anos da epidemia, as crianças e adolescentes que chegaram doentes, tiveram uma progressão rápida e faleceram sem que pudessem oferecer tratamentos efetivos. “Os fracassos e os sucessos são diversos”, avalia. No entanto, também atendeu pacientes nascidas de mães infectadas por HIV, que também já são mães hoje. “Felizmente, nós não tivemos nenhum caso de transmissão na terceira geração. No nosso serviço, nenhuma das filhas de mães infectadas transmitiu HIV para os seus filhos”, comenta.
Há 30 anos, sabia-se pouco sobre o HIV e menos ainda sobre as crianças infectadas pelo vírus. Foi um privilégio participar desse processo desde o começo
Jorge Pinto é agradecido pelas oportunidades que teve em participar dessas etapas. “Há 30 anos, sabia-se pouco sobre o HIV e menos ainda sobre as crianças infectadas pelo vírus. Foi um privilégio participar desse processo desde o começo”, afirma. “O tratamento para crianças era muito limitado. As drogas antirretrovirais atualmente disponíveis asseguram supressão virológica e restauração do sistema imunológico. A infecção pelo HIV se tornou uma doença crônica e controlável. O grupo da UFMG participou do desenvolvimento de várias dessas drogas em estudos multicêntricos internacionais”, completa.
Antes, a doença era permeada por preconceito e estigma. O professor lembra que havia um interesse misturado com escândalo, já que as pessoas achavam que apenas homossexuais contraíam o vírus. “Então, quando apareceram as primeiras crianças infectadas, isso era revestido de muito sensacionalismo”, relembra.
Com o passar do tempo, o conceito das doenças dos homossexuais desapareceu e as diversas formas de aquisição do vírus foram descobertas. A medicação, restrita aos adultos, era ainda mais restrita às crianças. No caso da transmissão vertical, uma em cada quatro mulheres transmitia o vírus para o bebê. “A possibilidade de eliminar esse tipo de transmissão é um avanço inegável”, comemora.
Criamos um serviço que se tornou referência nacional cujo modelo foi replicado em vários lugares
Jorge Pinto também participou dos principais estudos sobre drogas antirretrovirais utilizadas tanto para bloqueio da transmissão quanto para o tratamento das crianças infectadas. “Criamos um serviço que se tornou referência nacional cujo modelo foi replicado em vários lugares, não somente no Brasil”. O grupo capacitou centenas de profissionais no Brasil, América Latina e África, além de criar uma linha de pesquisa em que foram formados novos docentes na UFMG e em outras IFES.
Serviço de atendimento
Mais de três mil gestantes e cerca de 700 crianças e adolescentes já foram atendidos no Serviço do HC/UFMG-PBH, que constitui o principal centro de referência materno-infantil do estado.
Segundo o infectologista, é importante que a identificação da gestante contaminada seja precoce, ainda no primeiro trimestre de gravidez. “Nos últimos anos, a nossa taxa de transmissão está abaixo de 1%. Por vários anos seguidos, ela é zero. Os únicos casos de transmissão mais recente ocorreram em gestantes que chegaram tardiamente no serviço. Então, o tempo é crítico”, explica.
Atualmente, utiliza-se uma combinação de pelo menos três drogas para tratar a gestante com HIV. Assim que nasce, o bebê ainda precisa receber, nas primeiras seis semanas de vida, o AZT e outras medicações, dependendo do risco. Mesmo os bebês não infectados continuam sendo acompanhados pelos profissionais do serviço, já que podem ter riscos adicionais, como uma propensão maior para doenças infecciosas e doenças crônicas.
A inserção social desses jovens não pode ser negligenciada
Para Jorge Pinto, erradicar a transmissão vertical não resolve completamente a questão. “Há um grande número de crianças e adolescentes infectados que enfrentam problemas decorrentes da infecção crônica pelo HIV, da toxicidade associada aos antirretrovirais e do impacto na saúde mental e cognitiva. A inserção social desses jovens não pode ser negligenciada”, defende.
Ele ressalta que, desde 2001, o Serviço conta com o financiamento do Instituto Nacional de Saúde norte-americano (National Institutes of Health /NIH), o que serviu para fortalecer a infraestrutura da Unidade, em termos de equipamento e capacitação técnica. “Participar de uma rede internacional como essa, além dos ganhos científicos e tecnológicos, contribui para o controle de qualidade do laboratório central do HC/UFMG e traz recursos para a Faculdade”, comenta.
Aids ainda é desafio
Para Jorge Pinto, a Aids ainda traz novos desafios, já que existe uma banalização do processo. Os jovens continuam sendo a principal faixa etária de novos casos, cerca de dez vezes maior que a população em geral. “As novas gerações não se veem em risco de adquirir o HIV, acham que a doença desapareceu”, destaca.
O professor também se preocupa com a adesão ao tratamento, outro grande desafio também entre os adolescentes, já que é difícil garantir que os pacientes continuem tomando a medicação. “Na ausência de uma vacina que previna a transmissão do HIV, os esforços devem se concentrar nas estratégias de simplificação do tratamento que favoreçam a adesão, como drogas coformuladas em dose única diária ou compostos de longa duração que permitam doses semanais ou mensais”, declara.
Dispomos de conhecimento e recursos para bloquear a transmissão vertical do HIV. Podemos almejar que as próximas gerações nasçam livres do vírus
De acordo com Jorge Pinto, a curto prazo, a única população em que a doença pode ser erradicada são as crianças. “Dispomos de conhecimento e recursos para bloquear a transmissão vertical do HIV. Podemos almejar que as próximas gerações nasçam livres do vírus”, finaliza.
Redação: Larissa Rodrigues
Edição: Deborah Castro e Mariana Pires
Foto: Carol Morena
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