Marcos Borato

A formação de recursos humanos, seja na graduação, na residência ou na pós-graduação é um aspecto indiscutivelmente relevante

O professor Emérito da UFMG e aposentado no Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina, Marcos Borato Viana, graduou-se em Medicina na instituição em 1971. Foi residente de pediatria  e de hematologia, além de se especializar em onco-hematologia nos Estados Unidos, tornando-se, assim, o primeiro hematologista pediátrico do Brasil. Também foi o primeiro a defender dissertação no mestrado do “Programa de Pós-Graduação em Medicina – Pediatria” da Faculdade, atualmente chamado de Ciências da Saúde – Saúde da Criança e Adolescente, bem como foi fundador da residência em hematologia do Hospital das Clínicas (HC) da UFMG.

“Consequentemente toda minha pesquisa ficou voltada para hematologia pediátrica. Minha área de pesquisa inicial, por exemplo, foi exatamente sobre leucemia e linfomas”, conta Borato. Ele destaca sua tese como a mais importante das pesquisas realizadas, com maior repercussão. O trabalho discorre sobre a influência do estado nutricional na possibilidade de cura das crianças com leucemia linfoblástica. “Elas eram tratadas, mas ninguém percebia que a questão nutricional e a socioeconômica eram fundamentais para os resultados do tratamento”, aponta.

Foi possível demonstrar que a situação socioeconômica e, subsidiariamente, a questão nutricional, que dependia da primeira, eram fatores muito importantes para a possibilidade de cura

Com quase cem citações internacionais, o produto do seu doutorado analisou crianças tratadas no HC, no Hospital Felício Rocho, na Santa Casa e no Hospital da Baleia, formando o Grupo Cooperativo Mineiro para Tratamento de Leucemia. Borato explica que foi fundamental reunir mais de um hospital, aumentando a casuística, porque esta é uma doença relativamente incomum, sendo em crianças um pouco mais comum do que em adultos. “Foram quase 200 crianças avaliadas e foi possível demonstrar que a situação socioeconômica e, subsidiariamente, a questão nutricional, que dependia da primeira, eram fatores muito importantes para a possibilidade de cura”, informa.

“As crianças desnutridas ao diagnóstico e, de forma correlata, que vinham de um extrato socioeconômico desfavorável tinham pior prognóstico, mesmo sendo tratados da mesma forma. Isso era muito claro”, revela. “Entre 70 e 80% das crianças que tinham boa situação socioeconômica se curavam. Mas apenas 40% das que tinham situação ruim, conseguiam a cura da doença”, continua.

Para o professor Emérito, a diferença é muito grande, considerando que, além de terem o mesmo tratamento, tinham acesso ao medicamento, o qual era fornecido gratuitamente a elas.  “Assim, a diferenciação se dava pelas questões que circundavam o tratamento, como poder ir rápido ao hospital em caso de complicação, consciência dos pais sobre o que era a doença para que não parassem o tratamento, etc.”, esclarece.

O prognóstico de crianças com leucemia linfoblástica, a mesma da minha pesquisa, em países desenvolvidos, ou seja, em que elas têm uma situação socioeconômica melhor, é de 85 a 90% de chance de cura. No Brasil, chegamos ao máximo de 65%

Segundo Borato, essa é uma realidade de países de todo o mundo, mas, principalmente, daqueles em que o desenvolvimento socioeconômico é pior. “Por exemplo, o prognóstico de crianças com leucemia linfoblástica, a mesma da minha pesquisa, em países desenvolvidos, ou seja, em que elas têm uma situação socioeconômica melhor, é de 85 a 90% de chance de cura. No Brasil, chegamos ao máximo de 65%”, destaca. “Melhoramos em relação ao passado, mas ainda não chegamos aos patamares de países desenvolvidos”. Ele acrescenta que se ainda fizer uma divisão entre as crianças de família com melhores condições e as com condição desfavorável nesses países, como foi feita em sua pesquisa, continua havendo a diferença. “Ou seja, se não houver melhora das condições sociais e econômicas das famílias, essa diferença no prognóstico irá persistir”, defende.

“Não foi feito estudo posterior que evidencie a diminuição dessa diferença expressiva entre as crianças com pior ou melhor situação socioeconômica, mas em minha percepção isso pode ter ocorrido”, pondera o professor. “Para isso ter acontecido, foi preciso melhorar as questões socioeconômicas no país, como desde 2012 com os programas sociais. Mas, além disso, há outras questões relevantes, como a adesão ao tratamento e conhecimento da doença”, lembra.

Pesquisas de referência no mundo

Atualmente, Marcos Borato é coordenador do Laboratório de Hemoglobinopatia do Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico da Faculdade (Nupad), executando trabalhos, principalmente, sobre a doença falciforme (DF) e talassemia.  Ele comenta que tem o objetivo de contribuir para o conhecimento da evolução clínica das crianças diagnosticadas pelo Programa de Triagem Neonatal de Minas Gerais (PTN-MG).

Ao ter acesso a grande casuística foi possível realizar inúmeros estudos, até três vezes mais do que as pesquisas de leucemia realizadas em 13 anos, mesmo período em que atuo com doença falciforme

“A triagem neonatal do Nupad é a melhor do Brasil e uma das melhores do mundo em termos de eficácia, diagnóstico e seguimento. Ao ter acesso a essa grande casuística, muito maior do que de leucemia, foi possível realizar inúmeros estudos, até três vezes mais do que as pesquisas de leucemia realizadas em 13 anos, mesmo período em que atuo com DF”, afirma Borato. Ele diz que enquanto a leucemia tem, no máximo, 30 crianças diagnosticadas por ano, a doença falciforme tem 200, o que permitiu orientar cerca de dez doutorados e 20 mestrados com este tema.

“O mais interessante dos estudos nessa área é que há muita coisa clínica. Por isso que a parceria com a Fundação Hemominas foi fundamental para a realização das pesquisas, até porque as crianças realizam o tratamento nesta instituição, que conta com ambulatório de hemoglobinas e fazem a transfusão de sangue”, pontua o professor.

Estudo mostrou que o tipo SS era mais grave do que o SC nessa questão. E que quanto mais baixa a concentração de hemoglobina, mais acometidas as crianças ficavam. Com 3 ou 4 anos de idade, por exemplo, a estatura já estava afetada

Uma das pesquisas que orientou, também inédita no país, acompanhou, por um ano, crianças com doença falciforme, tanto com o tipo SS quanto o SC, para avaliar o desenvolvimento do peso e da estatura nessa população. “Sabia-se que a DF determinava uma baixa no crescimento da criança, mas ainda era desconhecido qual era a magnitude e em que momento isso ocorria”, discorre Borato. “Então esse estudo mostrou que o tipo SS era mais grave do que o SC nessa questão. E que quanto mais baixa a concentração de hemoglobina, mais acometidas as crianças ficavam. Com 3 ou 4 anos de idade, por exemplo, a estatura já estava afetada. O que ainda não tinha sido evidenciado em outras pesquisas”, conta.

Segundo Marcos, outra orientação de doutorado que está sendo repercutida até hoje em toda literatura internacional é sobre essas crianças desenvolverem acidente vascular cerebral (AVC), a obstrução de uma artéria do cérebro que leva ao infarto (falta de oxigenação e morte do tecido).  Esse estudo foi baseado em uma pesquisa dos Estados Unidos, que indica o doppler transcraniano (método de ultrassonografia para avaliar a velocidade do fluxo de sangue nas artérias do cérebro) para saber se as artérias estavam obstruídas e o quanto estavam. Assim, permitia-se detectar precocemente, antes que as artérias se obstruíssem totalmente, evitando o desenvolvimento do AVC.

Então, em 2005, começaram a realizar o método doppler e determinaram que um dos fatores mais importantes para dizer se a criança está predisposta a ter obstrução das artérias era a contagem dos reticulócitos (hemácia jovem). Borato explica que a relação se deve ao fato de que na doença falciforme forma-se a hemoglobina S, que acaba ‘grudando’ demasiadamente nos vasos e os obstrui, além das hemácias falciformes serem destruídas mais aceleradamente que as normais. “Assim, como mecanismo compensatório, a medula tem que produzir mais, fazendo com que as células jovens (reticulócitos) fiquem em um número elevado, atingindo até 18% sendo que o normal é 0,5%”, informa.

Como os reticulócitos têm acentuada adesão ao epitélio vascular, acabam ocasionando a obstrução dos vasos. Por isso que, como mostramos, era um importante fator relacionado ao AVC

“Como elas têm acentuada adesão ao epitélio vascular, acabam ocasionando a obstrução dos vasos. Por isso que, como mostramos, o reticulócito era um importante fator relacionado ao AVC”, enfatiza.  Para o professor, não se pode apontar essas células como responsáveis pelo derrame, mas elas têm um papel patogenético importante ao grudarem na parte interna dos vasos sanguíneos.

Nesses casos em que a criança tem alto risco de obstrução das artérias, considerados graves, o tratamento é realizar a transfusão profilática de três em três ou de quatro em quatro semanas. O professor argumenta que no processo de transfusão há a troca das hemácias que têm a hemoglobina S (da doença falciforme) pelas que não a têm. Assim “grudam” menos entre si e menos no vaso.

“Isso não é recomendado sempre. Um dos motivos é que a transfusão também tem seus riscos, ainda que baixos, de infecção. Outro motivo é que, nesse processo, a criança acaba ficando com excesso de ferro, podendo gerar outras complicações”, reconhece. Por isso só deve ser feita em casos necessários, como quando há o risco aumentado de AVC, mas eliminando o ferro por meio de medicamentos quelantes.

Diminuição do QI em crianças com doença falciforme

O professor está orientando uma pesquisa, que será publicada em breve, com avaliação do QI das crianças com doença falciforme, com base no conhecimento, ainda controverso, de que há diminuição do cociente intelectual em decorrência da anemia crônica ou de infartos, denominados “silenciosos”. O estudo prospectivo contou com 64 crianças com anemia falciforme do tipo SS, pareadas a crianças de escolas públicas com o mesmo gênero e idade.

“Evidenciamos que as crianças com DF, mesmo não tendo lesões cerebrais detectáveis morfologicamente por técnicas de imagem, tiveram uma diminuição de 20 pontos no QI. Ou seja, enquanto a média das crianças controle era de 112, as com doença falciforme atingiam a média de 91. Essa é uma questão que influencia no rendimento escolar das crianças”, conta Borato. Então, a partir desses resultados, o professor garante que o próximo passo, já em andamento, é pesquisar quais são os fatores que impactam e levam a essa diminuição tão expressiva.

Embora, para a literatura internacional, os infartos silenciosos sejam os responsáveis por essa diminuição do QI, Borato acredita que a anemia crônica seja o principal motivo. “Na anemia falciforme também há obstrução de pequenos vasos, que acarretam os infartos silenciosos. Então, supõe-se que isso explicaria, em grande parte, a diminuição do QI dessas crianças. Mas os resultados preliminares do nosso estudo, que ainda não está completo, apontam que crianças com ou sem infarto têm uma diminuição equivalente do QI, contrariando os resultados de outros estudos”, revela.

Os resultados preliminares do nosso estudo, apontam que crianças com ou sem infarto têm uma diminuição do QI, contrariando os resultados de outros estudos

Como os achados surpreenderam, o professor diz que também tiveram a ideia de aplicar a diferenciação por nível socioeconômico, como na sua tese. “A escola, apesar de pública, era no centro da cidade. Portanto as crianças são provenientes de bairros próximos e com condições socioeconômicas um pouco melhores. Por isso seria interessante comparar”, conta. “Evidenciamos, como era esperado, que o grupo controle tinha condições econômicas mais favoráveis. Sendo assim, o fator socioeconômico poderia explicar a diminuição do QI”, continua.

“Mas, mesmo introduzindo essa questão na análise estatística, a diferença permaneceu. Ou seja, uma criança com doença falciforme na mesma situação socioeconômica de uma criança controle, continuava tendo menos 20 pontos no QI”, discorre. “Assim, o resultado, até então, com base na ressonância magnética encefálica realizada nas crianças com a anemia, é que a baixa no QI não seria causada pelos infartos silenciosos”, argumenta o professor.

Ao serem acompanhadas com exames, incluindo psicológico, e se perceber uma diminuição do QI, pode ser uma indicação de transplante de medula

Como sugestão de intervenção ao problema, para melhoria da função intelectual, Borato aponta a necessidade de um estudo que avalie a consequência de antecipar o uso de um medicamento, já presente no tratamento da doença falciforme, para 6 meses ou até 1 ano de idade, antes que ocorra o déficit intelectual.  “Outro ponto é que, ao serem acompanhadas com exames, incluindo psicológico, e se perceber uma diminuição do QI, pode ser uma indicação de transplante de medula”, propõe. “Atualmente a criança que já teve AVC ou teve alteração no exame do doppler já tem indicação de transplante medular. Os resultados desse tratamento são excelentes, não só do ponto de vista da questão intelectual, mas da qualidade de vida como um todo”, completa.

O professor

Titular do Departamento de Pediatria, Marcos Borato foi diretor da Faculdade (gestão 1998-2002), vice-reitor da UFMG (gestão 2002-2006), Emérito em 2011 e secretário Adjunto de saúde da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (1983-1985). Atualmente, entre as funções que destaca, é Editor Associado da Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia.

Mas, mesmo com quase 60 orientações concluídas ou em andamento, para Borato, principalmente no caso da Faculdade de Medicina, o mais importante não é a pesquisa e sim a formação de alunos. “É possível atuar nos dois, como eu fiz. Mas, se fosse preciso optar, escolheria atuar na graduação. Acho que esse é o aspecto da atividade acadêmica mais primordial, já que estamos falando em formar pessoas, formar médicos”, expõe. “Eu me dediquei mais a essa área, apesar de, ultimamente, ter me envolvido mais com a pesquisa, já que estou aposentado. A formação de recursos humanos, seja na graduação, na residência ou na pós-graduação é um aspecto indiscutivelmente relevante”, acrescenta.

Redação: Deborah Castro
Foto: Carol Morena

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