Mariângela Leal Cherchiglia

Busco evidenciar a importância da Atenção Primária, ou seja, de um cuidado integral e de qualidade oferecido pelo SUS

Para Mariângela Leal Cherchiglia, cursar Medicina foi a busca por uma profissionalização especializada, com possibilidades em diversos campos do conhecimento, desde a prática clínica até a pesquisa básica ou aplicada. Ao longo do curso, foi se interessando por áreas que apresentavam conexão com as questões sociais e econômicas, como a pediatria e a medicina social. “A prática do raciocínio clínico me despertou para a investigação científica: a pergunta, o diagnóstico, a prescrição e a reavaliação da resposta encontrada. A união dessas duas inquietações me levou à pesquisa no campo da saúde pública”, discorre.

A pesquisa foi o que me levou a permanecer na Faculdade

Essa é a sua dedicação desde que recebeu o diploma de médica. E foi assim, como pesquisadora, que ela iniciou a sua história na Faculdade de Medicina da UFMG, quando passou a compor o quadro de colaboradores do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva (Nescon), órgão complementar da Instituição. “A pesquisa foi o que me levou a permanecer na Faculdade”, enfatiza.

No Núcleo, seu trabalho estava ligado à área de políticas de saúde e planejamento. Por isso, no mestrado, Mariângela se decidiu pela área de Administração, tendo desenvolvido como tema as diferentes formas de remuneração do trabalho médico em hospitais de Belo Horizonte. Essa bagagem ela levou para o Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade, onde é professora desde 1994.

Como consequência de seus interesses, em sua tese de doutorado, ela abordou algumas das consequências para a Saúde, decorrentes da reforma do Estado, de 1998, realizada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. “Minha tese teve o objetivo de analisar como a noção de eficiência, proposta na reforma, estava sendo apropriada pela gestão pública e qual era seu impacto em serviços públicos de saúde”, conta.

Efetividade dos gastos

Seu interesse se expandiu para a análise da efetividade dos gastos e das intervenções na atenção à saúde nos diferentes níveis de atendimento, assim como as consequências para a população. Desde 2004, junto aos docentes e discentes do Grupo de Pesquisa em Economia da Saúde (GPES), ela trabalha, de forma inédita, com a agregação de registros de sistemas de informação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Com esses dados, construíram uma coorte de 145 milhões de pacientes que transitaram pela alta complexidade no período de 2000 a 2015, seja com internação, procedimentos ou medicamentos. A partir da qual é possível avaliar os gastos e a efetividade do cuidado, estudando os registros de pacientes em terapia renal substitutiva, transplantes, tratamento oncológico ou de saúde mental, ou que utilizam medicamentos de alto custo para diversas patologias.

Agora comparamos os tratamentos praticados com os protocolos clínicos e isso ajuda a melhorar a qualidade da assistência

Ela conta que a equipe conseguiu recuperar a trajetória assistencial desses pacientes e analisar a efetividade dos tratamentos em termos de sobrevida. “Mas, mais do que isso, agora comparamos os tratamentos praticados com os protocolos clínicos e isso ajuda a melhorar a qualidade da assistência”, destaca. Sobre a doença renal crônica, eles verificaram que alguns estados brasileiros, principalmente no Norte e Nordeste, o diagnóstico era mais tardio, com maior chance de morrerem. Já no Sul, eram mais recorrentes os problemas relacionados ao câncer de próstata, uma vez que a população é mais envelhecida. “No câncer, o cenário é semelhante, a maioria dos pacientes são diagnosticados tardiamente (estádios III e IV) e, muitas vezes, o tratamento é apenas paliativo”, informa Cherchiglia.

“Se por um lado se gastam milhões de reais por ano com os tratamentos de alto custo como o do câncer, por outro, os gastos com Atenção Primária (APS), prevenção e promoção ainda estão aquém do necessário”, relata. De acordo com ela, “nas análises preliminares pode-se aferir que se o valor equivalente fosse investido na Atenção Primária, novos casos poderiam ser prevenidos ou diagnosticados precocemente, projetando menor gastos com a alta complexidade, além de propiciar mais qualidade de vida aos pacientes”, acrescenta.

Disparidades dos serviços de saúde

Observou-se que mulheres negras e de baixa escolaridade levavam maior tempo para o início do tratamento depois de diagnosticadas, mesmo estando dentro do Sistema

A professora explica que pesquisas qualitativas complementam as lacunas que os números não são capazes de revelar. Como no estudo em que buscou compreender as diferenças entre o diagnóstico e o início do tratamento para câncer de mama na perspectiva de diferentes perfis, demográfico e social, de mulheres em Belo Horizonte. “Observou-se que mulheres negras e de baixa escolaridade levavam maior tempo para o início do tratamento depois de diagnosticadas, mesmo estando dentro do Sistema”, comenta Mariângela. Para ela, essas são desigualdades da sociedade que permanecem dentro do serviço.

Em outro trabalho, verificou-se que as mulheres com planos de saúde iniciavam o tratamento no SUS mais rápido do que as pacientes do próprio Sistema. “Isso porque no plano já realizavam todos os procedimentos necessários para o tratamento e isso é demorado no SUS, seja o diagnóstico ou o primeiro tratamento, como a cirurgia para a retirada do tumor”, explica. “Na análise dos casos de câncer de pulmão em Minas Gerais, havia duas regiões sem radioterapia na época da pesquisa, então como o tratamento pode ser completo? Isso influencia nos resultados da saúde, aumentando a mortalidade, por exemplo”, realça Mariângela.

Judicialização da Saúde

A professora Mariângela alerta que ainda não há muitas análises sobre a questão da judicialização da saúde e efetividade dos cuidados. E comenta que é importante a participação do Judiciário nessa área, mas que isso trouxe um ativismo que pode aumentar a desigualdade, pois nem todos tem acesso a ele.

Estamos introduzindo, na disciplina de Política de Saúde e Planejamento, a discussão da incorporação de novas tecnologias no SUS e a importância de utilizarem criticamente as evidencias científicas produzidas, muitas vezes oferecidas pela indústria farmacêutica

De acordo com ela, a incorporação de novos medicamentos, muitas vezes de alto custo, pode trazer melhores resultados clínicos e sobrevida dos pacientes. Mas também podem ter sido incorporados devido aos interesses empresariais. “Isso está diretamente relacionado à formação dos nossos alunos que são os prescritores. Por isso estamos introduzindo, na disciplina de Política de Saúde e Planejamento, a discussão da incorporação de novas tecnologias no SUS e a importância de utilizarem criticamente as evidencias científicas produzidas, muitas vezes oferecidas pela indústria farmacêutica”, revela.

Desde que entrei na Faculdade, luto pelo Sistema Único de Saúde

 “Ao analisar a efetividade e gastos com os procedimentos de alto custo, busco evidenciar a importância da Atenção Primária, ou seja, de um cuidado integral e de qualidade oferecido pelo SUS. Desde que entrei na Faculdade, luto pelo Sistema Único de Saúde”, argumenta.

Ela ainda declara que já trabalhou em diversos contextos políticos e econômicos para pesquisa e educação universitária, uns muito difíceis e outros mais favoráveis. “Minha preocupação também é em relação à formação dos nossos alunos, da graduação e pós-graduação. É de reforçar que tenham pensamento crítico em relação às políticas implantadas, que seja fomentada por evidências”, continua. “Minha esperança são os jovens, que carregam o impulso da transformação inclusiva”, conclui.

Assinatura: Deborah Castro

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