Paulo Caramelli

Ao compreender o envelhecimento cerebral bem-sucedido e suas relações, é possível ajudar em relação à prevenção de doenças neuropsiquiátricas

O início da carreira acadêmica do paulistano Paulo Caramelli ocorreu na sua própria cidade. Graduado em Medicina pela Universidade de São Paulo (USP) em 1987, com residência médica em Neurologia pelo Hospital das Clínicas da USP, também se tornou doutor na área pela mesma Instituição, mas, desta vez, com período sanduíche de dois anos na Université de Montréal, no Canadá.

Atualmente, Caramelli é professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG, coordena o Grupo de Pesquisa em Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Instituição e o Serviço de Neurologia do Hospital das Clínicas (HC) da UFMG, além de ser bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

Pensei em uma forma de atração de jovens pesquisadores, da pós-graduação ou de iniciação científica

Quando entrou para o corpo docente da Faculdade, em 2005, por ainda não ter sua história em Minas Gerais e na UFMG, Caramelli decidiu começar a trajetória com um estudo de base populacional na cidade de Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. “Pensei em uma forma de atração de jovens pesquisadores, da pós-graduação ou de iniciação científica. Pouco tempo depois do doutorado, tive uma experiência nessa linha em São Paulo e achei que seria um bom método para começar minhas atividades de pesquisa aqui”, conta. A cidade escolhida, então, foi onde nasceu sua esposa, Maira Tonidandel Barbosa, médica geriatra e também professora do Departamento de Clínica Médica.

Denominado Pietà, em homenagem à Serra da Piedade, atração turística de Caeté, o estudo avaliou indivíduos com 75 anos ou mais, chamados de idosos muito idosos, já que estavam acima da expectativa média de vida do brasileiro. O objetivo do Estudo Pietà foi investigar diferentes aspectos do envelhecimento cerebral, relacionados ao comprometimento cognitivo, demência, parkinsonismo, depressão, ansiedade, psicose, dependência e abuso de álcool, bem como o envelhecimento cerebral bem sucedido.

“As avaliações foram feitas de 2007 a 2009, mas os dados coletados são analisados e ainda rendem estudos. Algumas pessoas que participaram como alunos de iniciação científica, por exemplo, hoje realizam seus trabalhos de pós-graduação, de mestrado ou doutorado”, afirma o professor. Assim, para ele, “acabou sendo uma boa forma de possibilitar a inserção dos projetos de pesquisa dessas pessoas no estudo como um todo”, rendendo seis dissertações e quatro teses publicadas como resultados do projeto. “Paralelamente, o projeto permitiu a integração com outros professores da Faculdade. Além da professora Maira Tonidandel Barbosa, que dividiu a coordenação do estudo comigo, participaram os professores do Departamento de Clínica Médica, Antonio Lucio Teixeira, Francisco Cardoso e Rogério Beato”, acrescenta.

Estudo Pietà

De acordo com o professor, 639 indivíduos com pelo menos 75 anos, vivendo em áreas urbanas e rurais de Caeté, aceitaram participar do estudo, correspondendo, assim, a 51,1% do total desta população na cidade. Desses, 409 (64%) eram mulheres e 230 (36%), homens. “As avaliações eram feitas em um pavilhão com atividades sociais para aposentados e no centro de assistência à saúde mental da cidade. Também fomos a alguns distritos do município, para avaliar aqueles que tinham dificuldade de se locomover ou que não tinham transporte para o local”, explica.
Nestas avaliações, definiram as condições clínicas, funcionais, neurológicas e psiquiátricas dos participantes. A equipe contava com neurologistas, geriatras, psiquiatra, neuropsicólogos, fonoaudiólogo, terapeutas ocupacionais e alunos de iniciação científica (do curso de Medicina da UFMG) para aplicar os questionários sobre hábitos de vida e dados socioeconômicos, por exemplo, e realizar avaliação da saúde física, mental e neurológica. O trabalho de campo foi realizado em esquema de mutirão, em finais de semana e durante um período de férias.

Em uma das análises, segundo Paulo Caramelli, os dados apontaram que 161 indivíduos apresentaram comprometimento cognitivo sem demência e 174 tinham demência, o que mostra uma prevalência de cerca de 50% de algum grau de comprometimento cognitivo da população avaliada. Entre os pacientes com demência, apenas 38 (21,8%) tinham diagnóstico prévio. Além disso, 11% dos idosos sem demência apresentava depressão no momento da avaliação. “Nesse aspecto, especificamente, avaliamos a fenomenologia da depressão de início tardio em relação à escolaridade, para verificar se a depressão de um idoso analfabeto, por exemplo, é diferente de um idoso de escolaridade maior”, comenta. “Encontramos algumas diferenças, como pior desempenho cognitivo nos pacientes com depressão e maior frequência de transtornos psicomotores nos idosos deprimidos com maior escolaridade, em comparação aos com nível educacional mais baixo”, continua.

Os resultados também mostraram que comprometimento cognitivo e demência eram mais frequente em mulheres. “Claramente essa frequência aumentava muito a cada cinco anos a mais na idade. A associação também foi muito mais frequente em analfabetos quando comparados aos alfabetizados”, afirma o professor. De acordo com ele, este resultado reforça os estudos brasileiros e internacionais sobre o analfabetismo e a baixa escolaridade diminuírem a reserva cognitiva contra os efeitos dos processos neurodegenerativos. Ou seja, pessoas com menor grau de escolaridade sofrem mais com as consequências da doença de Alzheimer ou de doença cerebrovascular, por exemplo, do que as mais alfabetizadas.
Esses resultados foram complementados pelas avaliações por imagem, usando uma técnica específica de ressonância magnética, que considerou a integridade da microestrutura da substância branca cerebral nos idosos muito idosos analfabetos e os com algum nível de alfabetização. “Observamos que mesmo aqueles com escolaridade muito baixa (média de três anos), tinham um cérebro estruturalmente diferente dos analfabetos. Assim, mesmo a pouca educação já promove um ganho na estrutura cerebral, o que pode justificar a reserva cognitiva cerebral em pessoas escolarizadas. Em níveis de escolaridade mais altos, esse potencial tende ser ainda maior”, pontua Caramelli.

Intervenção para prevenção de demências e comprometimento cognitivo

“Não temos estudos brasileiros de base populacional com idosos muitos idosos. E quando comparamos com a literatura internacional, as nossas taxas de prevalência de comprometimento cognitivo e demência são maiores nesta faixa etária”, alerta o professor, que aponta dois possíveis motivos: o pior controle dos fatores de risco vascular e a questão da escolaridade condicionando baixa reserva cognitiva.

A doença vascular é prevalente no Brasil. Ainda temos fatores de risco passíveis de controle, como hipertensão arterial ou diabetes, que não são controlados

Sobre a primeira questão, o professor revela que uma das observações que mais chamou sua atenção, com a avaliação dos 182 idosos que realizaram ressonância magnética como parte do estudo, foi a elevada presença de doença vascular cerebral. “Independentemente da doença degenerativa, como o Alzheimer que é muito presente na população idosa, a amostra de indivíduos avaliados daquela cidade de pequeno porte apresentou frequência elevada de doença vascular cerebral, mesmo clinicamente silenciosa, ou seja, sem história clínica de acidente vascular cerebral (mais de 90% tinham algum grau). Esse é um aspecto relevante”, discorre. “Já se sabe que a doença vascular é prevalente no Brasil. Ainda temos fatores de risco passíveis de controle, como hipertensão arterial ou diabetes, que não são controlados. O estudo comprova essa realidade”, completa.

A escolaridade média dos idosos brasileiros é muito baixa e já é comprovado que esta é um fator de risco para que o declínio cognitivo comece mais cedo

O neurologista também ressalta que a escolaridade média dos idosos brasileiros é muito baixa e já é comprovado que esta é um fator de risco para que o declínio cognitivo comece mais cedo. Isso porque o indivíduo com alta escolaridade tem uma reserva cognitiva maior, dificultando que a lesões degenerativas ou vasculares ultrapassem-na e comprometam o funcionamento do cérebro.

“A doença de Alzheimer é a principal causa de comprometimento cognitivo no idoso no mundo todo. A última medicação aprovada para seu tratamento foi em 2003. Inúmeras medicamentos novos vêm sendo testados e, caso os resultados sejam satisfatórios, eles devem tornar-se disponíveis para uso clínico daqui pelo menos quatro a cinco anos”, informa Caramelli. “Ainda assim, serão indicadas para pessoas em estágio muito inicial da doença. Dessa forma, o foco tem que ser a prevenção. Alguns estudos no mundo já apresentam sinais positivos para as intervenções de múltiplos domínios, não medicamentosas, como a prática regular de atividade física e intelectual”, defende.

Apesar de termos avançado muito, ainda há um grande abismo em relação ao que precisa melhorar

Segundo o professor, no Brasil, por exemplo, é comum diminuir as atividades intelectuais ao aposentar. “Por isso, seria interessante buscar diversificar e fomentar essas atividades para além das palavras-cruzadas, como jogos, atividades em grupo, serviços voluntários ou continuar trabalhando com uma carga menor”, argumenta. Ele também sugere atenção para a alimentação, indicando que estudos mostram a boa relação da dieta do mediterrâneo com benefícios para o cérebro. “Não menos importante, deve-se controlar todos os fatores de risco modificáveis: hipertensão arterial, diabetes, dislipidemia, obesidade, depressão, tabagismo e abuso de álcool. Apesar de termos avançado muito, ainda há um grande abismo em relação ao que precisa melhorar”, completa.

Envelhecimento cerebral bem-sucedido

Outra análise resultante dos dados do Estudo Pietà foi a avaliação do envelhecimento cerebral bem-sucedido: pessoas em idade avançada que têm desempenho cognitivo similar a idosos mais jovens ou mesmo a indivíduos de meia-idade, além da ausência de qualquer transtorno neurológico ou psiquiátrico. “Temos um aspecto particularmente interessante na nossa população: a escolaridade muito heterogênea, com taxas altas de analfabetismo e de baixa escolaridade entre os idosos. E, mesmo assim, há indivíduos que conseguem manter um desempenho cognitivo muito bom”, lembra.

“Na época de coleta de dados do Estudo Pietà, não havia nenhuma pesquisa no Brasil que avaliasse essa população, o que nos possibilita gerar dados originais, com informações diferentes da literatura internacional”, continua Caramelli. Ele explica que ao compreender o envelhecimento cerebral bem-sucedido e suas relações, especialmente dentro da população idosa muito idosa, é possível ajudar em relação à prevenção de algumas doenças neuropsiquiátricas.

Na população avaliada de Caeté, 18 indivíduos tinham envelhecimento cerebral bem-sucedido, o que equivalia a 2,8% da amostra total avaliada, sobre os quais os pesquisadores buscaram identificar as variáveis que estavam associadas àquela situação. “Por se tratar de um estudo transversal, não é possível inferir causa e efeito. Mas observamos que esses idosos eram mais jovens, o que era um resultado esperado. Ou seja, quanto mais você vive, menor a chance de estar nesse grupo. Outro ponto é que eles tinham pontuações significativamente menores em uma escala de depressão”, esclarece Paulo Caramelli.

Nas pesquisas com orientação do professor e em colaboração com outros colegas pesquisadores da UFMG, também foram feitas avaliações dos níveis de citocinas inflamatórias e observou-se associações de alguns marcadores que prediziam ou se relacionavam a um declínio cognitivo e funcional depois de um ano. “Estamos falando de indivíduos sem demência que, a partir dessas caraterísticas biológicas identificadas, tinham um desfecho em curto prazo, de até um ano, pior do que os indivíduos que tinham esses aspectos biológicos em um padrão considerado normal”, esclarece Caramelli.

Desde o início do estudo, a ideia era buscar identificar variáveis e fatores passíveis de algum tipo de modificação, seja para prevenir ou para fomentar um desempenho cognitivo melhor

“Desde o início do estudo, a ideia era buscar identificar variáveis e fatores passíveis de algum tipo de modificação, seja para prevenir ou para fomentar um desempenho cognitivo melhor. Por isso era importante entender esses indivíduos com envelhecimento bem-sucedido”, declara o neurologista. “Não há dúvida alguma que o controle dos fatores de risco vascular é fundamental. É preocupante ver que mesmo essa população em idade avançada ainda apresenta um controle ruim. Muitos indivíduos, no momento da avaliação clínica, estavam hipertensos. Alguns tomavam medicação, mas a pressão arterial não estava controlada, e outros nem sabiam que eram hipertensos. Esse é um problema muito sério ainda existente no Brasil”, revela.

Grupo de Pesquisa e Serviço de Atendimento em Neurologia Cognitiva

Paulo Caramelli conta que o Grupo de Pesquisa em Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Faculdade de Medicina da UFMG surgiu em paralelo ao Estudo Pietà, já congregando esta pesquisa. Junto a ele, também foi ampliado o Ambulatório de Neurologia Cognitiva do Serviço de Neurologia do Hospital das Clínicas da UFMG, que presta assistência a pessoas com comprometimento cognitivo, doença de Alzheimer, além de demências menos comuns, por ser um ambulatório de referência. Algumas das pessoas participantes do Estudo Pietà, inclusive, continuam sendo atendidas pelo Ambulatório.

“Criamos ainda, juntamente com o Prof. Leonardo Cruz de Souza, também do Departamento de Clínica Médica, o Laboratório de Neurologia Cognitiva e do Comportamento, que tem como principal objetivo desenvolver estudos utilizando técnicas de imagem cerebral e de avaliação cognitiva computadorizada”, acrescenta o professor. “O interessante é que conseguimos avaliar não só se o indivíduo apresenta acurácia boa ou ruim em testes de memória ou atenção, por exemplo,, bem como o tempo de reação. Você projeta informações na tela e avalia o tempo que o indivíduo processa a informação e obedece ao comando. Essa é uma variável quantitativa interessante porque permite diferenciar os resultados de pessoas que acertam o mesmo número de questões, por exemplo, mas demoram mais ou menos”, exemplifica.

Um desses estudos, que consistiu em uma tese de Doutorado, avaliou músicos da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, em comparação aos não músicos, em testes de atenção e memória visual. “É esperado que em relação à atenção e memória auditivas, esses músicos, que são de alta performance, tenham vantagens em relação a não músicos. Queríamos investigar e confirmamos que a parte visual também é diferente”, afirma Caramelli. Nos testes, a equipe da Filarmônica apresentou resultados melhores que não músicos, particularmente nos testes de atenção visual. “Talvez seja uma especificidade da atividade em orquestra, já que os indivíduos precisam dividir a atenção entre os músicos à sua volta, o maestro, a partitura à sua frente, entre outras atividades”, lembra. “Nós discutimos que talvez essa possa ser também uma estratégia válida para fomentar a reserva cognitiva. Ainda não temos dados suficientes para afirmar isso, mas sabemos que o ensino de música para crianças é um interessante passo nesse processo”, aponta.

Redação: Deborah Castro
Edição: Mariana Pires
Foto: Carol Morena

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