Saúde dos povos originários se deteriora com garimpo e exploração ilegal de recursos naturais nos territórios

Projeto de Lei 191/20, que autoriza exploração de recursos em terras indígenas, pode causar devastação ainda maior, comprometendo a vida nos territórios.


20 de abril de 2022 - , , , , ,


“O rio já é contaminado por mercúrio, o peixe vai comendo, a gente já tem relato de crianças nascendo com malformação, as mulheres e homens com cabelo caindo e histórico de câncer. Como que a criança vai beber água? Água é vida. Se a criança bebe água contaminada (com mercúrio), suja com lama, com certeza ela tem diarreia para no outro dia perder muito líquido. Então ela vai ser considerada desnutrida”, relata o Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami, Júnior Hekurari Yanomami.

Na maior reserva do país, a terra indígena Yanomami, a invasão de garimpeiros deixa rastros de destruição, com aumento da fome, abuso sexual e mortes. Assim como o representante indígena Júnior Hekurari Yanomami, o “Saúde com Ciência” ouviu indígenas de diferentes povos do país e profissionais da saúde que atuam na área para saber sobre a situação de saúde dos povos originários.

Os relatos mostram uma saúde totalmente fragilizada pelo garimpo ilegal, invasão de terras para exploração agropecuária e de madeira e não demarcação de territórios, situação que pode se agravar caso o Projeto de Lei 191/20 seja aprovado. Isso porque o texto, que tramita em caráter de urgência, facilita a exploração mineral e de orgânicos em reservas indígenas, assim como projetos de agricultura, infraestrutura e construção de hidrelétricas.

Na terra indígena Yanomami, a destruição causada pelo garimpo é uma realidade que pode ser constatada em números. A população de garimpeiros é quase a mesma de indígenas: calcula-se 20 mil garimpeiros e 28 mil Yanomamis que vivem na região, incluindo os isolados, em 371 aldeias. Uma convivência forçada, ilegal e longe de ser harmônica. No último dia 11 de abril, por exemplo, ao menos dois indígenas morreram e cinco ficaram feridos em um conflito armado incentivado por garimpeiros. Em 2021, as mortes desse tipo chegaram a 101, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra.

“Todos os dias têm voos de helicóptero, de avião. Mais de 120 aeronaves dos garimpeiros voam por dia no território”, relata o Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami, Júnior Hekurari Yanomami.

Relato da devastação

O território Yanomami conta com mais 10 milhões de hectares distribuídos no Amazonas e Roraima. Dados do Mapbiomas mostram que o garimpo nessas terras cresceu nada menos que 3.350% de 2016 a 2020. A ação dos garimpeiros tem levado ao aumento da malária, devido ao desmatamento, e também a contaminação dos rios com mercúrio, que é usado durante a extração do ouro, prejudicando à saúde. Os danos ambientais causados pelo mercúrio e os impactos do desmatamento também lavam a desnutrição.

“As comunidades têm hortas e plantas que a gente mesmo planta, mas as proteínas animais fugiram para longe por causa do barulho dos motores, porque os garimpeiros estão trabalhando 24 horas procurando ouro”, denuncia Júnior Hekurari Yanomami

Com a escassez de alimentos provocada pela ação dos garimpeiros, a comida vira moeda de troca para cooptação, especialmente de jovens indígenas, para trabalhar para o garimpo. A presença dos invasores também tem elevado a violência sexual. Segundo Relatório da Hutukara Associação Yanomami, divulgado em 11 de abril, pelo menos três meninas indígenas do povo Yanomami, de 13 anos, morreram após sofrerem série de estupros por garimpeiros ilegais.

O drama vivido pelos indígenas Yanomami também aflige outros povos, que sofrem com a invasão de terras em áreas de proteção ambiental. Um desses povos é os Mundukurus, que vivem no médio Rio Tapajós, nos municípios de Itaituba e Trairão, no Pará, região norte do país. Nessas terras, calcula-se 70 mil garimpeiros ilegais. O estudo indica que todos os participantes da pesquisa estão afetados pelo mercúrio. A análise revelou ainda que os peixes, principal fonte de proteína das comunidades, também estão contaminados.

“Quando ingerimos peixe contaminado com metilmercúrio, ele vai ser absorvido no nosso trato gastrointestinal e vai ser disponibilizado pela nossa corrente sanguínea para todos os órgãos do nosso corpo e ele pode porvocar lesões em diferentes regiões e apresentar diferentes sintomas, mas a gente diz que o mercúrio tem uma predileção pelo sistema nervoso central, então ela vai se depositar, se acumular no cérebro”, explica o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, Paulo Basta, que coordenou pesquisa em parceria com o WWF-Brasil sobre contaminação por mercúrio entre o povo indígena Mundurukus.

O que está em jogo?

A devastação de terras indígenas cresceu 41 vezes entre 2016 e 2021, segundo estudo do MapBiomas divulgados nessa terça, 19 de abril. A aceleração do desmatamento reforça a importância da preservação dessas áreas, que correspondem a quase 20% da vegetação nativa do país. O estudo apontou um forte crescimento da devastação provocada pela mineração. O professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG, Marcus Vinícius Polignano, lembra a exploração mineral vai muito além do desmatamento. Ouça a seguir:

Outra preocupação é com as atividades das madeireiras, que podem ser intensificadas. Essa atividade já vem afetando a saúde dos povos indígenas, como comenta Flay Guajajara. Cinegrafista e membro do Mídia Índia – uma plataforma de produção de conteúdo indígena – Flay Guajarara é um dos guardiões da floresta contra a exploração da madeira ilegal na terra indígena Araribóia, sudoeste do Maranhão, uma das mais ameaçadas do país. Segundo ele, a atuação de madeireiros impossibilita cuidados com a saúde e meio ambiente.

A terra indígena Araribóia têm 413 mil hectares, onde vivem cerca de 12 mil indígenas. Para Omais Guajajara, também pertencente a essa etnia, o agronegócio tem sido outra ameaça ao território.

Além facilitar a exploração das terras indígenas, a PL 191/20 pode aumentar o contato entre indígenas e não indígenas nos territórios. E esse contato já se mostrou prejudicial para os povos originários, com o aumento da disseminação de doenças transmissíveis e mudanças na alimentação. É o que tem vivenciado o povo da Área Indígena Pankararu, localizada entre o agreste e o sertão, nos municípios de Petrolândia, Tacaratu e Jatobá no Pernambuco. Há décadas, os Pankararu lidam com conflitos gerados pela invasão de posseiros, especulação imobiliária e a construção de barragem e hidrelétricas.

A liderança indígena, Elis Urbano Ramos, do povo Pankararu, comenta que o maior contato com não indígenas dentro das terras tem causado série de danos à saúde:

Saúde com Ciência

Saúde com Ciência”  é produzido pelo Centro de Comunicação Social da Faculdade de Medicina da UFMG e tem a proposta de informar e tirar dúvidas da população sobre temas da saúde. Ouça na Rádio UFMG Educativa (104,5 FM) de segunda a quinta-feira, às 5h, 8h e 18h. Também é possível ouvir o programa pelo serviço de streaming Spotify.