Adolescentes negros são até cinco vezes mais vítimas de homicídio do que não negros

Pesquisa traçou perfil das mortes em Belo Horizonte.


26 de julho de 2017


Resultado é de uma pesquisa que caracterizou o perfil epidemiológico das mortes por homicídio de adolescentes residentes em Belo Horizonte

Dissertação, defendida junto ao Programa Promoção da Saúde e Prevenção da Violência da Faculdade de Medicina da UFMG, demonstrou o impacto das desigualdades étnico-raciais como uma das múltiplas faces da violência entre adolescentes residentes no município de Belo Horizonte (BH). A pesquisa foi desenvolvida pela médica pediatra, epidemiologista e sanitarista na Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, Rejane Ferreira dos Reis, em seu mestrado.

Resultados mostram que vítimas são, na maioria, adolescentes negros, do sexo masculino, cujos homicídios foram por arma de fogo em vias públicas. Foto: Banco de Imagem

Através de uma abordagem quantitativa, Rejane caracterizou o perfil epidemiológico das mortes por homicídio e determinou os anos potenciais de vidas perdidas de adolescentes entre 10 e 19 anos, residentes em Belo Horizonte, no período de 2000 a 2014.

Ela também analisou as desigualdades entre raças nas taxas de mortalidades no período de 2000 a 2010. “Esse foi um grande diferencial da pesquisa, porque introduzi a raça como um elemento de vulnerabilidade muito importante. As diferenças mostram claramente a desvantagem muito maior para a população negra”, conta a médica.

Outro ponto de destaque da pesquisa, de acordo com Rejane, é que, embora existam trabalhos com a temática racial, poucos estão relacionados aos desfechos na área da Saúde. “Além disso, a adolescência é um ciclo de vida com muitas lacunas em assistências para a Politica de Saúde”,

Belo Horizonte tem destaque no cenário de homicídios

Em seu trabalho, o público pesquisado pela epidemiologista foi a população de adolescentes, o que é considerado pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial de Saúde, como a idade entre 10 e 19 anos. “Sabemos que não é a cronologia que vai definir a adolescência, porque ela é marcada por outros fatores além da idade. Entretanto a definição de um recorte etário permite a comparabilidade com outros estudos.”, explica a médica.

Com base nos dados secundários do Sistema de Informações Sobre Mortalidade, disponibilizados pelo Departamento de Informática do SUS (o Datasus), Rejane identificou maior chance de morte entre os adolescentes negros, principalmente com idade entre 15 e 19 anos e moradores de áreas periféricas da cidade.

O risco de morte destes adolescentes em relação aos não-negros chega a ser cinco vezes maior. O que mostra, segundo Rejane, que a raça negra apresenta maior vulnerabilidade ao homicídio. “O perfil traçado no estudo não difere do perfil das vítimas de homicídio já conhecido: adolescentes negros, do sexo masculino, cujos homicídios foram por arma de fogo em vias públicas”, afirma.

A médica também diz que o assassinato de adolescentes negros sacrificaram 120.100 anos potenciais de vida perdida no período de 2000 e 2014 e, nesses 15 anos estudados, apenas um óbito foi atribuído a intervenção legal, que é ocasionado pela polícia. “Pode haver um sub-registro desse dado. A polícia tem uma abordagem muito violenta com esses adolescentes. Mas não acredito que ela esteja sozinha nisso. Ela representa uma estrutura social e o racismo está em todas as instituições”, analisa.

Distribuição proporcional dos óbitos anos residente em Belo Horizonte, 2000 -2014. Gráfico apresentado na dissertação da Rejane dos Reis

“O que mais chamou a atenção no trabalho é que Belo Horizonte tem uma importância expressiva no cenário nacional em relação aos homicídios. O Brasil já apresenta uma das maiores taxas do mundo e BH ocupa a oitava posição no cenário nacional em relação aos adolescentes”, destaca Rejane.

Estes resultados da pesquisa sobre o genocídio dos adolescentes negros em Belo Horizonte também serão abordados pela epidemiologista na mesa-redonda “Adolescência e juventude: Clínica contra a segregação”, no dia 28 de agosto, durante o 4º Congresso Nacional de Saúde. Na oportunidade, pesquisadores e profissionais da área debaterão as vulnerabilidades em que as pessoas estão expostas. “É importante debater esse assunto para dar visibilidade ao que está velado. O mito da democracia racial também alcança a ciência. É importante retirar véu e retratar o racismo com a importância que tem, a de decidir quem vai viver ou quem vai morrer”, argumenta.

As mortes, o racismo e a relação com a história da colonização do Brasil

Ao apresentar a diferença entre as taxas de homicídio dos adolescentes negros e dos não-negros,  Rejane declara se tratar de racismo. “Umas das conclusões que cheguei com o estudo é de que estas mortes não são lamentadas. Mesmo quando vivos, não são considerados uma vida. Nós não sabemos que nome eles têm, nem sobre suas historias”, expõe.

A pesquisadora alega que as mortes em questão são, geralmente, classificadas como sem valor, perdíveis ou sacrificáveis, porque já eram enquadradas assim quando vivas. “São consideradas como ameaça a vida humana e não como uma população viva que necessita da proteção contra a violência ilegítima do Estado. Por isso a quem importa as vidas desses adolescentes negros mortos por homicídio? É o que a dissertação questiona”. “Na política contemporânea nem todo mundo conta como sujeito”, acrescenta.

A epidemiologista realça que é importante entender a colonização do Brasil para entender tais questões do racismo atualmente. “O conceito de raça, embora seja controverso, surgiu como meio de conferir validade às relações de dominação impostas pela conquista. A partir da formulação da teoria das raças, foram construídas novas identidades com conotação racial, em que se relacionavam às hierarquias, lugares e papeis sociais correlatos”, lembra a médica.

De acordo com ela, a imposição da dominação foi consequência desse padrão. Ou seja, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumento de classificação social básica da população. “A cor e os traços dos colonizados se tornaram atributos representativos da sua categoria racial, sendo que os explorados mais relevantes desta história foram os negros. Já os dominantes chamaram a si mesmos de brancos”, comenta. “O termo raça foi utilizado para classificar e hierarquizar a população brasileira, sendo a cor da pele o elemento preponderante para definir as categorias raciais”, completa.

Ela ainda enfatiza sobre o mito da democracia racial existente atualmente, o qual defende que negros e brancos convivem harmonicamente, desfrutando iguais oportunidades existentes, sem nenhuma interferência de disparidades sociais e das respectivas origens raciais ou étnicas. “Essa fala nega a história, diz que há uma mistura racial harmoniosa, que não há preconceito expresso contra os descendentes africanos, nem culturalmente, socialmente ou economicamente. A democracia racial tem função de instrumento ideológico e controle social”, continua.

“Meu trabalho denuncia uma iniquidade racial, que está longe de ser vista, até por conta do mito da democracia racial. Vivemos em uma sociedade que nega os conflitos raciais, que esconde os problemas embaixo do tapete sob o manto da diferença socioeconômica”, aponta.  “A população negra é a de pior inserção socioeconômica e isso, em minha opinião, é fruto de um racismo violento. Por isso, é preciso romper com o mito da democracia racial e entender as diferenças de risco quem estes adolescentes estão expostos”, acrescenta.

Dessa forma, Rejane reconhece que a primeira consequência possível do seu estudo seria sua temática entrar na agenda das políticas públicas. “Minha expectativa é que meu estudo possa contribuir, de alguma forma, para construção de politicas públicas municipais que observe esse fenômeno do genocídio negro e o transforme em um problema social”, conclui Rejane.

Congresso Nacional de Saúde

A 4ª edição do Congresso será realizada do dia 28 a 30 de agosto de 2017, na Faculdade de Medicina da UFMG, com o tema “Promoção da Saúde: Interfaces, Impasses e Perspectivas”. O evento é direcionado a um público multidisciplinar, composto de profissionais de diversas áreas da Saúde e correlatas, tanto do setor público quanto do setor privado, em especial professores, técnicos e estudantes, bem como agentes da saúde.

O 4º Congresso Nacional da Saúde integra ainda a programação das comemorações dos 90 anos da UFMG, celebrados em 2017.

Mais informações e inscrições na página do 4º Congresso Nacional de Saúde.

Nome: O Genocídio dos Adolescentes Negros no Município de Belo Horizonte: Quem importa?

Nível: Mestrado

Programa: Promoção da Saúde e Prevenção da Violência

Autor: Rejane Ferreira dos Reis

Orientadora: Cristiane de Freitas Cunha

Coorientadora: Eliane de Freitas Drumond