Estudo identifica alta incidência de deficiência de biotinidase no estado e 9 variantes genéticas inéditas

A pesquisa foi desenvolvida dentro do Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (Nupad), órgão complementar da Faculdade de Medicina da UFMG e Serviço de Referência Técnica do Programa de Triagem Neonatal em Minas Gerais


17 de maio de 2021 - , , , , , , ,


A deficiência de biotinidase é uma das mais recentes doenças graves e de origem genética inseridas no Programa de Triagem Neonatal de Minas Gerais (PTN-MG), que compõe o Programa Nacional de Triagem Neonatal vinculado à Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais e ao Ministério da Saúde. No exame conhecido como teste do pezinho, a triagem desses pacientes teve início em 2013, após um estudo piloto apontar alta incidência da doença no estado. Agora, o Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (Nupad), órgão complementar da Faculdade de Medicina da UFMG e serviço de referência técnica do PTN, conta com a confirmação dessa ocorrência por meio de uma pesquisa prospectiva. O trabalho também identificou as variantes genéticas associadas à deficiência de biotinidase em Minas e descobriu nove delas ainda não listadas no banco de dados mundial.

Nara de Oliveira, premiada pela melhor tese do Programa de Pós-Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente. Arquivo Pessoal

A relevância desses achados concedeu à pesquisadora Nara de Oliveira Carvalho, coordenadora do Laboratório de Genética e Biologia Molecular (LGBM) do Nupad, o prêmio de melhor tese do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde – Saúde da Criança e do Adolescente da Faculdade de Medicina de 2020.  

“Receber esse prêmio é muito gratificante não só por esse trabalho e a dedicação em realizá-lo, pensando que é uma doença pouco estudada e pudemos agregar mais conhecimento à comunidade científica. Também é uma valorização do serviço que o Nupad vem prestando para a comunidade com a triagem neonatal, que, principalmente em relação à deficiência da biotinidase e a detecção ainda sem manifestar qualquer sintoma, permite que as crianças iniciem o tratamento e vivam assintomáticas o resto das suas vidas”

Ela explica que o estudo piloto, realizado por nove meses (2007-2008) pelo próprio Nupad, resultou em um cálculo estimado da incidência da deficiência de biotinidase, mas pelo período curto de análise e por ser uma doença nova, fazia-se necessário um estudo maior, como o seu. Além disso, o piloto apontou a necessidade de identificar as alterações genéticas associadas à doença na população do estado e esse foi outro objetivo da sua tese.

Caracterização da doença em Minas Gerais

Para o desenvolvimento da sua pesquisa, Nara usou os dados do sistema do Nupad referentes aos diagnósticos da deficiência de biotinidase de forma retrospectiva, com os resultados dos testes realizados desde 2013, bem como dados atuais, totalizando cinco anos de análise (2013-2018). Os responsáveis assinaram o termo de consentimento para participar da pesquisa à medida que compareciam na primeira ou nas consultas subsequentes. Era a própria Nara quem fazia a abordagem com as famílias para explicar o objetivo e a importância do projeto. Nenhuma família se recusou a participar.

Além do exame tradicional, a pesquisadora incluiu os resultados do teste molecular, ofertado gratuitamente pelo Núcleo desde 2014 para todos os recém-nascidos que apresentassem alteração para a doença. “Esse é um exame complementar ainda não ofertado pelo SUS, mas por entender a importância dessa informação, o Nupad decidiu incluir o teste em seus serviços”, conta Nara.

“Inclusive, em alguns casos de confirmação de deficiência no teste enzimático, o exame molecular ajuda muito, pois é possível identificar mutações sabidamente danosas à atividade enzimática normal, e aí dar início ao tratamento da doença. Quando não é possível “fechar” o diagnóstico com os testes na criança, também se faz o teste molecular nos pais”, informa a coordenadora do LGBM, onde são realizados os exames.

“A deficiência da biotinidase é uma doença genética, com padrão de herança recessiva. Ou seja, para desenvolvê-la é necessário ter duas mutações iguais ou diferentes [também chamada de alteração genética ou variante patogênica], uma em cada cromossomo, assim herdando uma mutação da mãe e uma do pai”, comenta Nara. Nessa identificação das variantes associadas à deficiência, ela encontrou 36 em seu trabalho, sendo que nove dessas ainda não tinham registro em banco de dados internacionais.

Minas surpreende na frequência e com a variabilidade genética associada à doença

De acordo com Nara, a incidência de deficiência da biotinidase em Minas Gerais está entre as mais altas do mundo. Enquanto a estimativa mundial é de uma pessoa com a doença em cada 60 mil, a incidência em MG foi de 1 a cada 13.909 pessoas.

“Há variações de região para região, inerentes à genética da população de cada país. Em regiões com alta taxa de consanguinidade, em que casamentos entre parentes é mais comum, por exemplo, a incidência tende a ser maior, uma vez que a variabilidade genética é menor”, pontua. “Como em Minas Gerais não temos esse perfil, os achados surpreenderam. Temos uma variabilidade genética grande devido à própria constituição da população, mas constatamos uma incidência alta da doença. Essa é uma particularidade da região”, continua. Como ainda não é uma doença triada em todos os estados do Brasil, não há dados suficientes para comparar essa incidência especificamente em relação ao território nacional.

“Toda vez que identificamos uma mutação nova, fazemos o registro da sua associação com o resultado da atividade enzimática. Por exemplo, achamos uma mutação e ela estava associada a deficiência profunda [forma grave da doença]. Então, caso ela volte a aparecer, esse achado já está registrado e facilita a interpretação dos dados. E esse banco de dados onde registramos é acessado mundialmente. Então também há essa contribuição do estudo. Como é uma doença relativamente nova, à medida que as mutações vão aparecendo, atualiza-se a lista desse banco de dados”

Dessa forma, para a pesquisadora, saber sobre as variantes é importante para ter uma ideia do prognóstico. E esse foi outro dos seus objetivos: conseguir associar as mutações genéticas ao quadro mais grave ou mais brando da doença. “Saber quais são as mutações que mais acometem a população deste estado é importante em questão de pesquisa, além de saber se a doença no estado se manifesta de forma parcial ou profunda”, acrescenta.

“O teste do pezinho possibilita detectar a doença ainda sem manifestações de sintomas e o sequenciamento genético dá mais segurança para a indicação na administração do medicamento, que apesar de não ter nenhum efeito colateral, é para a vida inteira”, enfatiza Nara. Por ser fundamental começar a tomar a biotina o quanto antes (embora determinadas manifestações diminuam depois de iniciar o tratamento, algumas são irreversíveis, depois de instaladas), conseguir identificar duas variantes já descritas no banco de dados e associadas à manifestação grave pode salvar vidas. Mas não é algo simples de ser feito.

Por isso que além da frequência da doença no território mineiro, a pesquisadora chama a atenção aos achados em relação à alta variabilidade no comportamento da enzima. Isso porque não foi possível fazer uma correlação perfeita das variantes e a manifestação da atividade enzimática, que é dosada para diagnosticar a doença e sua gravidade.

“Até hoje não há consenso na literatura. É preciso continuar pesquisando, porque a correlação ainda não é consistente. Isso porque a atividade da enzima varia muito, tanto em indivíduos diferentes quanto em indivíduos que tem a mesma mutação. Isso não permitiu ainda estabelecer uma correlação perfeita entre os dados genéticos e o perfil bioquímico”, discorre.

Programa de triagem: diagnóstico, tratamento, acompanhamento e pesquisa

A pesquisadora Nara em análise dos resultados dos exames. Arquivo Pessoal

Nara de Oliveira lembra que o Nupad é referência nacional em relação à triagem neonatal:

“Não somos apenas um laboratório, mas parte de um Programa de Triagem. Além de prestar o serviço de testes, tanto na triagem sanguínea como na molecular, para diversas doenças, o Núcleo encaminha os pacientes e faz o monitoramento de todo o processo de diagnóstico e tratamento. Ou seja, todas as crianças diagnosticadas são monitoradas, por um setor específico do Nupad que realiza busca ativa.  Muitas são atendidas exclusivamente em Belo Horizonte, nos ambulatórios da UFMG, e outras conseguem ser atendidas em regiões próximas de onde residem. Então é possível ter tudo, o ciclo inteiro do serviço, via Nupad.”

Por isso foi importante também apresentar seus achados para o Núcleo, o que subsidiou a decisão do órgão em manter a realização do teste molecular como parte do Programa de Triagem Neonatal, inclusive para ter o registro caso apareçam outras novas variantes. Mas, após a conclusão da tese, nenhuma nova variante foi identificada, apenas as já observadas no estudo. Além disso, as informações apontadas em sua tese enriquecem a literatura científica a respeito de uma doença pouco conhecida mundialmente.

“Os resultados ressaltam que a triagem neonatal é viável e necessária para tratar crianças ainda assintomáticas, evitando o desenvolvimento de sequelas, principalmente aquelas irreversíveis ou mesmo a morte. Além disso, mostra a importância de o teste de sequenciamento genético como complementar à triagem sanguínea”

ressalta Nara de Oliveira Carvalho

A autora também defende a necessidade de mais estudos abordarem a deficiência de biotinidase. Na sua tese, por exemplo, alguns poucos pacientes tiveram sintomas leves da doença mesmo com o tratamento, necessitando de uma dosagem maior da medicação. Então “esse é um aspecto que merece ser investigado para saber quais as mutações apresentadas por essas crianças, se é possível fazer alguma associação, ou mesmo se houve interrupção do uso do medicamento. Além disso, é preciso continuar pesquisando para futuramente compararmos os dados e verificar se é possível fazer uma correlação melhor entre as variantes e as manifestações da doença”, conclui.

Título: Caracterização bioquímica e molecular das formas graves e parciais da deficiência de biotinidase no Programa de Triagem Neonatal de Minas Gerais: estudo prospectivo de cinco anos
Autora: Nara de Oliveira Carvalho
Nível: Tese
Programa: Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde – Saúde da Criança e do Adolescente
Defesa: 27/11/2019
Orientador: Marcos Borato Viana

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