Trabalho com apps pode ser prejudicial à saúde

Apps de transporte e entrega tornaram-se saídas para o desemprego, mas com condições precárias para o trabalhador


01 de maio de 2019


Aplicativos de transporte e entregas tornaram-se saídas para o desemprego e garantem autonomia, mas com condições precárias para o trabalhador

*Guilherme Gurgel

“Minha rotina era dirigir, aproximadamente, 12 horas por dia. Ficava muito tempo sentada e tinha muita dor nas costas”, afirma Liliane Tissot, motorista em um aplicativo de transportes. Assim como ela, cerca de 4 milhões de brasileiros trabalham com a oferta desses serviços, como transporte e entregas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A pesquisadora da Faculdade de Medicina da UFMG, Mariana Roberta Simões, explica que a própria ausência do vínculo formal faz parte dessas condições precárias presentes nas novas formas de ocupação. Mas ressalta que “pior do que trabalhar para essas plataformas, é ficar desempregado. É uma oportunidade interessante, que tem seu valor. Mas precisa ser regulamentada, para permitir que a pessoa tenha seu emprego sem que este seja fonte de adoecimento, como é o desemprego”.

Em um dos seus estudos, ela analisou as condições de saúde dos servidores do transporte coletivo urbano em Minas Gerais e encontrou associação entre a precariedade do trabalho e o adoecimento físico e mental. “Eu estudei pessoas que têm um vínculo formal de emprego e mesmo assim foi possível identificar essa relação. O trabalhador que não tem esse vínculo está mais vulnerável ainda”, afirma.

Mariana explica que, no caso dos motoristas, a exposição ao calor e ruído excessivos, longos períodos de tempo sentado e a vibração do veículo são condições que tornam o trabalho precário. “Mas também existem as condições associadas ao vínculo de emprego, que é se sujeitar a jornadas extensas, não ter horários para descanso, fazer um trabalho noturno, não ter férias, não ter a folga semanal devida e a possível necessidade de ter outra ocupação para complementar a renda familiar. Conceitualmente, essas são as que mais afetam a situação desse trabalhador”, avalia.

Os impactos para a saúde

A motorista Liliane conta que tem um nível de estresse muito alto durante o trabalho com o aplicativo. “Dirigir tendo a responsabilidade de levar outra pessoa que confiou em você é muito complexo, além do cansaço físico de ficar horas sentada no carro, as buzinas, as fechadas no trânsito e setas não dadas”, enumera.

“Já é possível prever, por várias pesquisas, que esses fatores têm adoecido o trabalhador, principalmente com doenças como a depressão e distúrbios do sono”

As condições precárias como as citadas estão ligadas ao aparecimento dos transtornos mentais, mas não é uma associação fácil de ser feita, já que o estresse acaba sendo, muitas vezes, naturalizado. “Já é possível prever, por várias pesquisas, que esses fatores têm adoecido o trabalhador, principalmente com doenças como a depressão e distúrbios do sono”, destaca Mariana.

Em sua tese sobre os motoristas e cobradores do transporte coletivo urbano, ela descobriu que 13,1% daqueles com condições de trabalho satisfatórias tinham algum transtorno mental comum. Enquanto a porcentagem passa dos 30% em relação aos classificados com situação muito ou extremamente precária. O que pode ser comparada aos motoristas de aplicativos.

Acrescentado a isso há as consequências para a saúde física, que já são bem consolidadas na literatura, segundo a enfermeira. “No caso dos motoristas, por exemplo, a vibração do veículo traz dores pelo corpo, principalmente no pescoço e o ruído excessivo influencia na perda da audição”, exemplifica.

Para prevenir esses fatores, os trabalhadores com vínculo formal são assegurados com uma série de normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho, que delimitam a jornada, o horário de descanso, o uso de Equipamento de Proteção Individual (EPI), entre outras medidas. “Mas o autônomo por si só, negligencia muitas dessas regras, mesmo conhecendo os riscos da atividade. Ele faz isso em função da necessidade de manter a renda e, quando não tem um contratante que garanta esses direitos, ele acaba ficando mais exposto”, lembra Mariana.

Esse cuidado com a segurança foi uma preocupação de Roberto Tadeu, que trabalha em um aplicativo de entregas, utilizando sua bicicleta. “Eu uso todo o EPI e sinalização necessária. Porém, nem todos os entregadores andam assim. Na maioria das vezes é devido ao custo dos itens de segurança que são caros e nem todos têm condição de investir nesses produtos”, afirma.

Ainda assim, Mariana orienta que a recomendação mínima é que pratiquem atividades físicas, tenham momentos de lazer, controlem uma jornada que seja sustentável e não ultrapasse os limites de cada um.

Autonomia ou precarização?

Trabalhador de um aplicativo que oferece entrega de comida. Imagem comum no trânsito de Belo Horizonte. Foto: Carol Morena

A pesquisadora Mariana acredita que “a pressão desse tipo de vaga é justamente o que causa o adoecimento, já que a responsabilidade da renda é passada para o autônomo. Então, se não trabalha, não recebe”. O argumento é o mesmo apresentado por Liliane que trabalhou integralmente como autônoma por alguns anos e hoje é empregada com carteira assinada, usando o aplicativo como complementação de renda aos finais de semana.

Para ela, o emprego formal tem a vantagem de permitir uma organização financeira. “Com o aplicativo, se o carro estraga ou fico doente, não consigo trabalhar. Além disso, tinha que dirigir muito para conseguir pagar minhas despesas, já que tinha que abater o custo de manutenção do carro e o combustível”, explica.

Já para Roberto, a autonomia representa maior liberdade, apesar de algumas dificuldades. Ele atua há um ano como entregador em uma rotina de pelo menos 10 horas por dia e relembra as dores recorrentes no joelho quando iniciou neste trabalho. Por isso, investiu em uma bicicleta mais adequada e aulas para aprender a melhor forma de pedalar.

Para ele, essa forma de trabalho é melhor do que a com carteira assinada, como atuou por nove anos. “Quando você trabalha por conta própria, faz seus horários e isso faz com que tenha que ser extremamente disciplinado com sua rotina, pois os resultados dependem única e exclusivamente do que você produz. Portanto, não há nada garantido, mas não ter que aguentar cobranças do empregador é um ótimo ponto”, defende.

Entre o desemprego e as condições precárias

Mariana acredita que essas novas formas de ocupação continuarão a surgir a partir da modificação do mercado. “Cada uma que surgir vai estabelecer sua própria forma de prestar o serviço? Não deve haver um olhar mais político sobre isso, para ajudar nessa organização e garantir o direito ao trabalho e à saúde dessas pessoas?”, questiona.

Para ela, a resposta está nas políticas sólidas de saúde e de proteção ao trabalhador, que permitam que essas novas modalidades de emprego surjam com alguma garantia que ele não vai ser penalizado, principalmente na sua saúde. “As reivindicações não podem deixar os direitos desse tipo de trabalho à margem, já que eles são importantes e preenchem a lacuna do desemprego. Mas é preciso existir uma regulamentação mínima”, conclui.

*Guilherme Gurgel – estagiário de jornalismo
Edição: Deborah Castro

Saúde e trabalho

Durante a semana em que é comemorado o dia do trabalhador, a Faculdade de Medicina aborda, por meio de uma série de reportagens especiais, aspectos relacionados à saúde ocupacional. 

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