Para lembrar: ditadura nunca mais

Registros e depoimentos relembram passagens emblemáticas da resistência contra a ditadura na Faculdade de Medicina da UFMG


01 de abril de 2019


“Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”, disse Edmund Burke. Por isso, a Faculdade de Medicina da UFMG faz questão de lembrar de sua participação na resistência contra a ditadura militar no Brasil, instaurada entre 31 de março e 1º de abril de 1964. Alguns registros históricos podem ser encontrados em arquivos nas páginas eletrônicas da UFMG e em documentos da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg). Mas a história também está viva na lembrança de professores e funcionários da Faculdade, que viveram a militância na época.

Para que essa memória continue viva, reunimos, aqui, algumas passagens emblemáticas dos anos de chumbo na Instituição. São resgastes de diversos registros, principalmente depoimentos de quem viveu os horrores de duas décadas de ditadura no país. Sobreviventes que reafirmam a atuação heroica dos envolvidos no movimento de resistência da Medicina da UFMG, para que jamais se apague da memória essa página sombria da história do país. Confira a seguir:

Atentados

Criado na década de 1950, o Show Medicina é o grupo teatral que conta com a participação de estudantes da Faculdade de Medicina da UFMG. A companhia tem como marca o enredo pautado pelo humor inteligente e engajado. Essa característica, no entanto, não passou despercebida pelo governo militar, que, para interromper as apresentações do grupo, protagonizou um dos episódios mais marcantes do regime em Minas.

Quem conta melhor essa história é José Euclides Ribeiro, aluno da Faculdade entre 1964 e 1968. Em entrevista concedia ao Centro de Comunicação Social da Faculdade, em 2016, ele relatou um dos atos que inaugurou o ciclo de violência no estado.

“Era um desafio. Tudo passava pela aprovação da censura. Tínhamos duas versões: uma para quando o censor ia ao espetáculo e outra para quando ele não aparecia. Em 1966, alguém jogou um ácido na plateia e atingiu uma moça, que teve queimaduras no rosto. Fomos levados para o Dops [Departamento de Ordem Política e Social] e, só depois, descobrimos que era uma tentativa de acabar com o espetáculo por parte de pessoas do governo ditatorial da época”, relata.

Os espetáculos foram suspensos entre 1978 e 1986, mas ressurgiram e o teor crítico e bem-humorado das peças continua até hoje. Essa e outras histórias se encontram registradas no documentário sobre o Show Medicina, produzido por meio de financiamento coletivo, em 2017. Para conferir a programação de espetáculos, assim como a da exibição do documentário, acesse: https://www.facebook.com/showmedicinaofilme/?fref=ts

Cartaz de divulgação do Show Medicina. Acervo Cememor.

Rir para não chorar

O nome Braz Indiano de Souza batiza um dos espaços do Diretório Acadêmico Alfredo Balena (DAAB), em homenagem ao Braz, “o barbeiro do DA”, no ano em que completara 40 anos de profissão na Faculdade. Em 1969, ele veio trabalhar no DA como cabelereiro, em meio a ditadura militar. Em entrevista ao Centro de Comunicação Social da Faculdade, concedida em 2009, ele falou sobre lembranças que, apesar de duras, renderam algumas risadas.

“Eu tinha sempre que dar uma escorregada e desviar o assunto com a polícia para o pessoal escapolir”. Braz lembra que uma vez havia um aluno fazendo panfletos em um mimeógrafo quando a polícia chegou. “Ele estava em uma sala, aqui no DA. Quando a polícia perguntou, eu disse que ele estava em aula, aí eles saíram. Corri lá dentro e avisei, o aluno fugiu ali pelos fundos. Quando a polícia voltou para procurá-lo, ele já tinha saído. Os casos são muitos e nem tudo eu me lembro. Uma vez a coisa ficou feia, eles levaram uns 400 estudantes presos de madrugada”, recorda.

Perseguição e exílio

O ano que marcou o início da carreira de Braz na Faculdade é o mesmo que marca a prisão de Maria Auxiliadora Lara Barcellos, ex-estudante de Medicina na UFMG, em 1969. Sua história pessoal, como ex-guerrilheira, que lutou contra a ditadura, se mistura com a do Brasil e da Faculdade de Medicina. Aprovada em 3º lugar no vestibular de 1965, Maria Auxiliadora era vista pelos colegas como uma pessoa inteligente, alegre e bonita. Mas, ninguém melhor para apresentar Dôra do que ela mesma: 

Texto em que Maria Auxiliadora (1945-1976) se apresenta. Acervo Cememor.

Maria Auxiliadora se destacou em suas apresentações no Show Medicina e também por intermédio de seus escritos. A estudante abandonou o curso para se engajar na luta armada e, como integrante da VAR Palmares, foi perseguida, presa, torturada, condenada e banida do país para o Chile em janeiro de 1971. Depois de internada por problemas psíquicos e de amnésia, cometeu suicídio em Berlim Ocidental em 1976.

Recorte de jornal da época. Acervo Cememor

Além de Dôra, outros alunos da Faculdade de Medicina foram expulsos devido ao regime de exceção como Jorge Raimundo Nahas, Ângelo Pezzuti da Silva, Gilney Amorim Viana e Athos Magno Costa e Silva.

Alunos de Honra

Os ex-estudantes da Medicina Ângelo Pezzuti da Silva e Maria Auxiliadora Lara Barcellos,falecidos no exílio na década de 70, são portadores da Medalha de Honra da UFMG, concedida em 2008 para os 11 alunos cujas mortes estão relacionadas à militância contra o regime militar no Brasil.

Alunos homenageados. Acervo Cememor.

3º Encontro Nacional de Estudantes

Telas de arame, policiais e viaturas militares. O ano era 1977 e o cenário aterrador era no campus Saúde da UFMG, o mesmo onde hoje funciona a Faculdade de Medicina e outras unidades de saúde da Universidade. Nesse mesmo espaço, encontra-se o Diretório Acadêmico Alfredo Balena (DAAB), palco de um dos mais famosos casos de repreensão e resistência do movimento estudantil durante a ditadura militar. Conversamos com o professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG, Antônio Thomaz da Matta Machado, estudante de Medicina e tesoureiro do DA nessa época. Na memória, o professor guarda – com detalhes – cenas da reunião onde pretendia-se refundar a União Nacional dos Estudantes (UNE), mas que resultou na prisão de quase 400 estudantes.

“Vim para escola em 1973 como calouro. O IBC [Instituto de Ciências Biológicas] era aqui nesse prédio mesmo, então o curso todo era realizado aqui na Faculdade, local de grande concentração de estudantes. Foi uma época também de grande derrota dos estudantes… era proibido fazer partido, manifestação e se reunir. Nós fazíamos um tipo de teatro de jornal, toda a contestação era pela cultura, senão a gente era preso. No DA, discutíamos muito a questão da saúde, pois as cidades estavam inchando, havia um crescimento econômico no país, mas não havia nenhuma estrutura. Então, discutíamos isso, mas era uma minoria que participava”.

Manifestação de estudantes no corredor do laboratório central da Faculdade. Acervo Cememor.

“Os DA´s não foram fechados na UFMG, eles permaneceram abertos. Em outros locais, como Bahia e São Paulo, eles foram fechados. Em 1976, discutíamos muito também a questão da reconstrução da UNE, que foi colocada na ilegalidade pelo regime militar e passou a ser expressamente proibida. Então, em junho de 1977 resolvemos fazer uma reunião para refundar a UNE aqui em Belo Horizonte. Marcamos um encontro no DA, que era nacional, mas de forma clandestina, pois estávamos sendo perseguidos. Os estudantes começaram a vir para cá, do Brasil todo. A polícia começou a cercar as estradas e prender todo mundo. Por isso, o pessoal mais de liderança não veio de ônibus, pois já sabiam dessa possibilidade”.

Recorte do Jornal do Brasil de 11 de junho de 1977. Acervo Cememor.

“No DA, conseguimos reunir centenas de alunos e nos propusemos a resistir para garantir o 3º ENE. Criamos dois grupos de resistência, um para ficar fora e outro para ficar dentro da Faculdade. A polícia e o exército cercaram a Medicina, com viaturas e telas de arame, fechou tudo de madrugada, desrespeitando a autonomia universitária. Muita gente foi embora, mas muita gente ficou lá dentro, umas 400 pessoas”.

Estudantes reunidos em assembleia do Campus Saúde. Acervo Boletim UFMG.

“Com isso, criamos uma resistência muito interessante, em que negociávamos com o reitor da Universidade. O exército exigiu que o reitor cortasse a luz e o telefone do DA. Mas nós conseguimos que o reitor deixasse a luz num primeiro momento. Depois fomos negociando mais e acabou que o reitor liberou o telefone. Foi quando começamos a ligar para as pessoas conhecidas e da família para vir para cá trazer comida e roupa. Mas acabou que a polícia atacou e o pessoal revidou, foi um quebra pau! No fim, fomos retirados do DA, espremidos por um corredor fardado. Muitos foram levados para o Parque de Exposições da Gameleira para interrogatórios e, depois, foram presos”.

Estudantes saem abraçados do campus Saúde. Acervo Projeto República.

Em entrevista ao Boletim UFMG, em 2017, a professora da Faculdade de Medicina da UFMG, Sandhi Barreto, que compunha a diretoria do DA Alfredo Balena na gestão 1977-78, comenta que o evento demonstrou “grande audácia política” por parte dos estudantes. “Avalio que fizemos certo, foi uma audácia necessária, que pôs em evidência a truculência do governo militar e se transformou numa denúncia importante para a crescente perda de legitimidade da ditadura”, completa.

A UNE voltou à cena em 1979, em congresso realizado em Salvador.

Recorte do jornal Estado de Minas com depoimento da professor Sandhi
Barreto. Acervo Covemg.

Confira também a reportagem do TV UFMG com os depoimentos de Samira Zaidan, Thomaz da Matta Machado e Ana Rita Trajano, vítimas da repressão.


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