Vacina para tratar dependentes de cocaína
Em testes com roedores, quantidades menores da droga chegaram ao cérebro dos animais vacinados.
24 de outubro de 2017
Substância foi testada em roedores e gerou anticorpos que retiveram boa parte da droga no sangue, impedindo que chegasse ao cérebro dos animais
Dados da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (Fife), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), revelam que o Brasil é o segundo maior consumidor mundial de cocaína. A droga, que se popularizou na década de 1990, quando os cartéis colombianos produziam e exportavam mais de 500 toneladas do produto por ano, é considerada um problema de saúde pública, uma vez que governos federal e estaduais procuram alternativas para tratar os dependentes da substância.
Um aliado promissor para o tratamento desses dependentes é a vacina anticocaína, que está sendo desenvolvida por grupo da UFMG e foi tema da reportagem de primeira página da edição 1996 do Boletim UFMG. A vacina, cuja patente já foi depositada pela Coordenadoria de Transferência e Inovação Tecnológica (CTIT) da UFMG, é fruto do trabalho de pesquisadores do Departamento de Química, da Escola de Farmácia e da Faculdade de Medicina da UFMG.
O objetivo é obter substâncias com propriedade imunogênica que possam ser usadas no tratamento de dependentes químicos de cocaína. O professor Ângelo de Fátima, do Departamento de Química, explica que propriedade imunogênica é a capacidade que uma substância tem de induzir o sistema imunológico a produzir anticorpos. Esse sistema é a base para a criação de qualquer vacina. “Uma plataforma proteica é conectada a uma determinada substância na qual se pretende produzir o anticorpo. Depois de introduzida no organismo, a vacina ativa o sistema imunológico do paciente, e ele produz o anticorpo contra o agente que deve ser combatido”, explica.
Na fase de testes realizados com roedores, os pesquisadores perceberam que quantidades menores da droga chegaram ao cérebro dos animais vacinados. “A indução de anticorpos provocada pela vacina reteve uma quantidade maior da droga no sangue do roedor, não chegando ao cérebro do animal, que é o alvo biológico da cocaína. Conseguimos diminuir os efeitos da droga no animal, alterando o perfil farmacocinético da substância”, diz o professor Ângelo.
Os testes com os roedores já foram finalizados, e o conselho de ética da UFMG está avaliando o início dos experimentos com primatas, etapa que deve começar nos próximos meses. O grupo vai avaliar a toxicidade e a segurança da vacina, observando possíveis efeitos colaterais da substância. Depois, será iniciado o protocolo de testes em humanos, última etapa para que a vacina possa ser comercializada.
Ângelo de Fátima explica que há, nos Estados Unidos, uma vacina anticocaína em desenvolvimento, porém a substância em teste nos laboratórios da UFMG apresenta uma diferença estrutural importante que facilita a sua produção. “As vacinas convencionais, como a anticocaína dos Estados Unidos, originam-se de plataforma proteica, que pode ser uma proteína de vírus ou de bactéria. A nossa vacina vale-se de uma plataforma não proteica feita 100% em laboratório”, conta.
Segundo o professor, a plataforma não proteica torna a vacina mais estável, fácil de ser manipulada e mais durável: “Como não usamos plataforma proteica, nossa vacina pode ser manuseada à temperatura ambiente e não precisa de refrigeração para a sua estocagem. Isso tudo torna a vacina mais barata e fácil de ser produzida”.
Impacto social
O professor Frederico Garcia, do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG, destaca a vertente social de uma vacina que possa ser usada para tratar a dependência química, problema que hoje afeta mais de 18 milhões de pessoas no mundo todo. “Essa pesquisa pode trazer muito impacto para a saúde pública, uma vez que é grande o número de pessoas que sofrem transtorno por uso da substância e que poderiam ser beneficiadas pelo produto. O impacto social também ocorre porque, para cada dependente químico, existem, em média, outras três pessoas que também sofrem as consequências dessa dependência”, calcula o professor.
Apesar dos potenciais benefícios, Frederico Garcia ressalta que uma vacina anticocaína não deve ser vista como solução única para o complexo problema das drogas. “Em um campo em que ainda não existem medicamentos para tratar as pessoas, ela aparece como recurso que poderá ser associado ao tratamento psicológico e outras medidas”, diz Garcia.
A vacina poderá ter efeito especialmente positivo para alguns grupos, como as mulheres grávidas que nem sempre conseguem interromper o uso da droga durante a gestação. “Nelas, a vacina funcionaria como um escudo, impedindo que a substância chegasse ao feto”, explica o professor Ângelo de Fátima.
Segundo Frederico Garcia, caso os testes clínicos sejam bem-sucedidos, a vacina estará disponível no mercado em, no máximo, três anos. Ela também pode servir de base para estudos com outras substâncias. “O modelo dessa pesquisa não vale para o caso do álcool, que é uma substância quimicamente muito simples, mas pode ser aplicado a outras substâncias que causam dependência, como a heroína ou a nicotina”, conclui.
Pesquisa: Moléculas estimuladoras do sistema imunológico para tratamento de dependência a drogas de abuso, processos de síntese, vacina antidroga e usos
Pesquisadores: Ângelo de Fátima, Frederico Duarte Garcia, Simone Odilia Fernandes, Valbert Nascimento Cardoso, Adriana Martins Godin, Angélica da Silva Maia, Leonardo da Silva Neto, Maila de Castro das Neves e Paulo Sérgio Augusto
Redação: Luana Macieira / Boletim 1996 – Cedecom/UFMG