Zilma Reis

O que mais me motiva são os grandes desafios da saúde. A gestação foi feita para dar certo. Então tento trazer, com a ciência, respostas diferentes e nunca antes pensadas

Para a professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da UFMG, Zilma Silveira Nogueira Reis, o destaque da sua atuação como médica e pesquisadora está no fato de incorporar o saber das ciências exatas, área em que começou a traçar seu percurso. “Vim de um ensino médio de escola pública profissionalizante, onde cursei Edificações. Com isso ingressei na Universidade no curso de Engenharia Civil e, após meio curso, parei para repensar a escolha”, conta.

Não porque não gostasse dos números, mas Zilma Reis desejava algo mais humanizado, entrando para a graduação em Medicina em 1982. “Eu não imaginava o quanto essa trajetória iria influenciar minha carreira, principalmente enquanto pesquisadora”, relata. “Foi trazendo toda essa bagagem da matemática e engenharia que consegui achar um lugar específico, em que fosse possível aliar os grandes problemas da saúde, nos quais a ciência precisa contribuir, com soluções que envolvem outras áreas além da medicina, como a informática e a matemática. Talvez esse seja o meu diferencial”, continua.

Somado a essas vivências, que inclui a atual coordenação do Centro de Informática em Saúde da Faculdade (Cins) e o cargo de vice-presidente da Sociedade Brasileira de informática em Saúde (Sbis), a professora comenta que sua experiência de mulher e mãe também tem influência em decidir aplicar seus conhecimentos no desenvolvimento de tecnologias para a área de Ginecologia e Obstetrícia. “Ao longo desses 30 anos nessa especialidade que amo, tive a oportunidade de trabalhar no cuidado direto das pacientes, com imagens, ultrassonografia, biossensores e no cuidado do recém-nascido. Disso tudo, o que mais me encanta é o parto, um momento mágico na vida da mulher”, pontua.

Além disso, ser mulher e já ter vivido a experiência de gravidez, com dois partos maravilhosos, ajudou-me sentir que poderia contribuir ainda mais, com a experiência pessoal, vendo na prática o que aprendi na teoria

Ser mulher e já ter vivido a experiência de gravidez, com dois partos maravilhosos, ajudou-me sentir que poderia contribuir ainda mais, com a experiência pessoal, vendo na prática o que aprendi na teoria”, completa Zilma. Ela diz que essa é uma mistura entre o ser mulher e a ciência. “Acho que seria uma médica incompleta se não pesquisasse. E seria uma pesquisadora infeliz se não atuasse cuidando diretamente das gestantes”, afirma.

Tecnologia para solução de um problema de saúde mundial

“É preciso reconhecer que existe um problema. Não é simples saber se o bebê é prematuro ou não. Não temos certeza que dia foi o momento da concepção. As mulheres têm ciclos diferentes e há uma série de fatores que deixa essa cronologia muito incerta”, comenta Zilma. Ela ainda lembra que anualmente há cerca de três milhões de grávidas no Brasil e metade dessas não tem a cronologia confirmada.

“A informação já nas primeiras horas de vida pode direcionar o profissional de saúde para um cuidado diferenciado aos que precisam”, explica. Foi essa sua motivação para a ideia do Light Scan Skiange, um dispositivo com tecnologia acessível e de baixo custo, com sensor não invasivo que emite luz de LED sobre a pele do bebê e, através da luz refletida, avalia-se a idade gestacional. “Principalmente em local em que não há tecnologia adequada para dar a atenção necessária ao prematuro, a informação disponibilizada pelo Skinage é muito importante”.

Não tenho dúvida que esse foi o projeto que mudou a minha vida de pesquisadora. Fomos ousados em mandar uma proposta de uma universidade brasileira para concorrer com o mundo inteiro

“Não tenho dúvida que esse foi o projeto que mudou a minha vida de pesquisadora. Fomos ousados em mandar uma proposta de uma universidade brasileira para concorrer com o mundo inteiro. A ideia de iluminar a pele e conseguir informações do bebê teve credibilidade”, conta Zilma. Ela enaltece que não foi pensada como algo apenas imaginário. Com uma equipe interdisciplinar, ela procurou fundamentar bem a sua proposta. “Com a primeira grande verba internacional recebida para o projeto, tivemos uma série de oportunidades, tanto em desenvolver uma equipe multidisciplinar aqui dentro da Faculdade, como o apoio do exterior”.

Já no primeiro um ano e meio do projeto conseguimos registrar a patente dessa tecnologia, que nunca havia sido pensada no mundo

Para sua execução, esse projeto conta com 15 profissionais da física, ciência da computação, bioengenharia, médicos e biomédicos. “Já no primeiro um ano e meio do projeto conseguimos registrar a patente dessa tecnologia, que nunca havia sido pensada no mundo, em nome da Faculdade e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), além da rápida validação”, declara Reis.

Os primeiros testes do Skinage foram feitos com 122 bebês e rendeu publicações internacionais. “Mais recentemente tivemos o privilégio de ganhar o Grand Chalenges Canadá para que a tecnologia seja validada em outros ambientes, tentando mostrar qual é o seu valor em diferentes cenários de parto”, ressalta Zilma. Com o investimento, o dispositivo será testado em um hospital de Moçambique, em Portugal e no Brasil, simultaneamente. “Sabemos que foi para lugares como a África que pensamos a tecnologia, ou seja, em que as mulheres têm muita dificuldade de fazer o pré-natal”.

Não é só dizer se é prematuro ou não. O bebê de 40 semanas está preparado para esse mundo. Já os outros, quanto mais prematuros mais complexas são as tecnologias que precisam para sobreviver ao primeiro dia de vida

Zilma reconhece que uma semana de discordância na idade gestacional faz diferença, pois é essa informação que determina as necessidades do bebê ao nascer, tanto para sobreviver ou para não ter sequelas no decorrer da vida. “Não é só dizer se é prematuro ou não. O bebê de 40 semanas está preparado para esse mundo. Já os outros, quanto mais prematuros mais complexas são as tecnologias que precisam para sobreviver ao primeiro dia de vida”, esclarece.

Ela pontua que quando não há essa assistência necessária é que a tecnologia Skinage pode ser fundamental para garantir que a saúde para o resto da vida dessa criança não seja afetada negativamente. Pois, mesmo sobrevivendo, ainda pode haver sequelas como o maior risco de morte até os cinco anos de idade e consequência no potencial neuropsicomotor da criança, no pulmão ou distúrbios neurológicos, por exemplo.

Registrar bem os dados do paciente também é cuidado

De acordo com Reis, que também trabalha com qualidade de dados, a importância do registro eletrônico que carrega as informações de saúde é importante para continuidade do cuidado ao paciente e, para que, quando voltar ou mudar de local de atendimento, seja possível ao profissional conhecer sua história. “Eu costumo dizer que registrar bem os dados também é cuidar. Ainda queria viver em uma era que informações desde o nascimento, como quanto eu pesei ao nascer, qual foi minha primeira nota de Apgar e se nasci bem me pertencessem e, não importa em que momento ou local estivesse, fosse acessível eletronicamente”, revela.

Como desde 2015 é responsável pela implantação do prontuário eletrônico no Hospital São Vicente, o maior do complexo do Hospital das Clínicas (HC) da UFMG, com continuação em toda parte ambulatorial prevista para os próximos dois anos, Zilma tem vivido de perto a modernização do atendimento médico. “Percebemos o desafio que é. O médico residente incorpora mais rapidamente a transição, mas isso é um choque para muitos outros. Por isso acredito que precisamos preparar melhor os profissionais para isso”, defende a professora, responsável também pela disciplina optativa “Informação e decisão em saúde”, em que introduz conteúdo sobre tecnologia em informação para os estudantes.  

Quando se informatiza, além de deixar o escrito legível, que antes tinha a questão da letra, é preciso organizar as informações. É preciso implantar o que chamamos de protocolos clínicos

Para Zilma, as pessoas aceitam com mais facilidade quando percebem a importância da mudança, principalmente quando interagem com ela, com a oportunidade de aplicá-la progressivamente, postura assumida na sua experiência no HC. Ela argumenta que a dificuldade também se dá porque não é algo como deixar de escrever no papel e passar a anotar as informações no computador. “Quando se informatiza, além de deixar o escrito legível, que antes tinha a questão da letra, é preciso organizar as informações. É preciso implantar o que chamamos de protocolos clínicos”, revela.

A professora conta que algumas informações específicas são necessárias para que seja possível formular a hipótese diagnóstica e planejar o que o paciente precisa. Para organizar essas informações, colocam-se campos obrigatórios. Se antes, muitas vezes, faziam o raciocínio de forma mais intuitiva, já que os formulários de papel aceitam qualquer informação, podem se chocar com o eletrônico que tem a obrigatoriedade do preenchimento desses campos.

“O primeiro impacto é achar muito complicado e mais difícil. Mas há um grande benefício por trás disso. Além de ajudar a tomar consciência melhor de todas as informações que preciso antes de tomar uma decisão, gera conhecimento”, realça Reis. Como as informações ficam registradas no HC, um hospital escola, as pessoas podem usar secundariamente as informações em pesquisas científicas e indicadores de qualidade do cuidado. “O mais importante é ficar mais bem registrado em benefício do próprio paciente. Outros profissionais de saúde podem usar as informações para dar continuidade ao cuidado”, acrescenta.

A professora argumenta que ao serem bem registradas, as informações podem se somar, considerando que o indivíduo procura diferentes serviços de saúde ao longo da vida, e dar a oportunidade do profissional de saúde tomar melhores decisões. É nesse sentido que ela também desenvolve projetos que buscam interoperabilidade entre sistemas de informação, com o objetivo de organizar a maneira de registrar.

Para Zilma, não é só o sistema de informação que tem que se conectar a outro. A maneira de registrar o dado para que seja interpretado exige um nível de acordos e padronização semântica, para que a informação coletada em um hospital faça sentido nos demais ou ao longo da vida do paciente. “Isso é o que chamamos de registro longitudinal de saúde. Escrever de maneira legível, sem siglas e respeitando determinados padrões faz toda a diferença para que a comunicação seja eficaz e o profissional possa tomar boas decisões. Por isso tem que ser trabalhado desde a formação do profissional e eu tenho feito esse esforço”, relata Reis.

Uma das últimas coisas que temos trabalhado é a própria paciente contribuir com o seu registro de saúde

“Uma das últimas coisas que temos trabalhado é a própria paciente contribuir com o seu registro de saúde. Através de um aplicativo que desenvolvemos, ela pode colocar o que planeja para o parto e essa informação estará disponível ao profissional de saúde para que possa compartilhar as decisões com ela”, continua. Entre essas informações há aplicar ou não a analgesia, quem irá cortar o cordão umbilical e quem a acompanhará na hora do parto. “Assim a própria mulher contribui para que o cuidado em saúde aconteça de forma humanizada, da maneira como ela imaginou”.

Tecnologia de empoderamento das gestantes

O plano de parto é uma das funcionalidades presentes no aplicativo “Meu Pré-Natal”, um projeto coordenado pela professora Zilma. Junto ao Skinage, o aplicativo tem recursos da Fundação Bill & Melinda Gates e da Fapemig. “Com esses dois projetos, queríamos que a mulher, empoderada pela informação, pudesse contribuir para evitar o nascimento prematuro do seu filho e ele deslanchou muito rapidamente. Atualmente tem mais de 70 mil downloads, disponíveis em três idiomas (português, inglês e espanhol)”, aponta.

Mais do que uma tecnologia para smartphones, o aplicativo também influencia a consulta das gestantes. Reis discorre que já é comum pacientes mencionarem o tempo de gestação em semanas, não mais em meses, porque conseguem acompanhar e entender melhor a cronologia da gestação. “Fazemos a consulta clínica com base no cotidiano das gestantes. Então acaba sendo longa, por ter muito a conversar. Mas sempre ficamos com a impressão de que não falamos tudo”. Por isso ela realça a importância do aplicativo como complemento.

É claro que nunca vai substituir o cuidado em saúde e nem foi feito com esse objetivo, mas o aplicativo com certeza pode ajudar. Já ouvi relatos como o contador de contrações ter ajudado a decidir se estava mesmo na hora de ir para a maternidade

Criado a partir das dúvidas mais comuns das suas pacientes, o Meu Pré-Natal possibilita que as mulheres carreguem uma lista de perguntas e respostas, fundamentadas cientificamente e com linguagem acessível. “É claro que nunca vai substituir o cuidado em saúde e nem foi feito com esse objetivo, mas com certeza pode ajudar. Já ouvi relatos como o contador de contrações ter ajudado a decidir se estava mesmo na hora de ir para a maternidade”, discorre.

Agora o aplicativo também será usado para um ensaio clínico de uma pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco, em que avaliará os seus benefícios para gestantes adolescentes, acompanhando dois grupos: um que utiliza o aplicativo e o outro que não.

Apoio para fazer ciência

Graduada em medicina pela UFMG, Zilma Reis especializou-se em ginecologia e obstetrícia no Hospital das Clínicas da UFMG, onde iniciou a carreira de pesquisadora com o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Saúde da Mulher. O doutorado, também realizado na UFMG, teve parte sanduiche na Alemanha. Em 2011 realizou seu pós-doutorado na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, em informática médica. Quando retornou ao Brasil, foi convidada a coordenar o Cins e começou a introduzir ciência na informática.

Fazer ciência na Universidade sempre foi a minha prática, mas inovar levando a ciência até à sociedade é um sonho que se tornou realidade nesses últimos projetos

“O que mais me motiva são os grandes desafios da saúde. Como obstetra não quero ver mortalidade infantil ou materna. A gestação foi feita para dar certo. Então tento trazer, com a ciência, respostas diferentes e nunca antes pensadas”, revela. Para isso, segundo Zilma, é preciso ter coragem, acreditar nas ideias, trabalhar com dedicação e ética, além de, sempre que possível, tentar que seja uma ideia prática, objetiva e que faça diferença na vida das pessoas. “Fazer ciência na Universidade sempre foi a minha prática, mas inovar levando a ciência até à sociedade é um sonho que se tornou realidade nesses últimos projetos”.

“Mas todo esse exercício de ciência só tem sido possível porque existe uma equipe multidisciplinar motivada e que trabalha intensamente. São alunos de pós-graduação, professores, pesquisadores, tanto do Brasil como a distância. Assim como com os patrocinadores”, lembra a professora.

Redação: Deborah Castro
Foto: Carol Morena

 

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