Tempo de paradoxos envolve medicina contemporânea
04 de setembro de 2014
A primeira sensação que ficou após o término da conferência “Virtudes e mazelas da medicina contemporânea” foi a de vazio. Não porque ela não tenha sido esclarecedora, mas porque foi impossível não fazer uma reflexão, a partir dos comportamentos médicos descritos, sobre o nosso próprio modo de viver.

“Precisamos desafiar a excessiva pressa e continuar convivendo”, observou João Gabriel. Foto: Bruna Carvalho
Para começar, o conferencista e professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina, João Gabriel Marques da Fonseca, relacionou a contemporaneidade – ou pós-modernidade – a episódios de angústia diária, aborrecimentos, estresse. “O ‘fazer nada’ pode ser considerado um pecado”.
Em uma linguagem mais técnica, o termo foi definido como uma condição sociocultural e estética que prevalece no capitalismo contemporâneo após a queda do Muro de Berlim e consequente crise das ideologias dominantes do século XX.
Nesse contexto, há o surgimento da expressão “anomia”, algo que corresponde à falta de valores e que traz à tona o homem diet, ser que não tem essência. Dentro da conjunção niilista do homem diet, alguns fatores se destacam: hedonismo, materialismo, superficialidade. O ser “anômico” ainda lida com a rarefação da hierarquia, inclusive na prática médica.
Contradições
Já a estética, ou concepções das sensações que temos da vida, é resumida em uma tríade: imprecisão, com sua falta de referências e modelos confiáveis; excessos, de gente, carros, informação, tecnologia; paradoxos. “Os veículos são cada vez mais rápidos e o trânsito está cada dia mais lento. Um sujeito compra um carro que anda a 280 km/h para ter que andar a dez”, exemplificou João Gabriel.
“Virgindade vai a leilão”. A matéria de um jornal mineiro, compartilhada pelo professor, era de 2001, mas o paradoxo continua atual. O conteúdo dizia que o lance mínimo para “adquirir” a garota, que tinha virgindade atestada pelo ginecologista, era de 500 reais, mas o leilão já havia ultrapassado o valor de um mil. Na tentativa de “cativar” o repórter disfarçado, o agenciador disse que recebera uma proposta de cinco mil, mas recusara a oferta por razões éticas.
Desafios
Na pós-modernidade, ao mesmo tempo em que há maior capacidade diagnóstica, eficácia no tratamento de doenças e possibilidade de resolução de problemas, os médicos lidam mais com o descuido da própria saúde, grande pressão de desempenho e deterioração da relação médico-paciente.
Se os riscos anestésicos, segundo João Gabriel, diminuíram cerca de mil vezes em comparação com a década de 1950, os médicos atuais também devem aprender a conviver “bem” com a tecnologia.
Como assim conviver “bem”? “É preciso ter cuidado com o uso acrítico e o excesso de tecnologia”, disse o conferencista. Ao revelar um gráfico recente da importância relativa dos exames instrumentais propedêuticos, a anamnese estava muito acima de qualquer procedimento. Em outras palavras, o excesso de tecnologia às vezes pode gerar o afastamento humano do médico e do paciente. Além disso, a autoconfiança do médico pode se comprometer.
A redução de custos também foi citada, até como forma de recuperar essa autoconfiança. “Não existe como sustentar os gastos progressivamente maiores”, analisou o professor.
Relação médico-paciente
“Talvez o maior desafio” seja mesmo a reconstrução da relação entre médico e paciente. Uma relação que envolva mais acolhimento, escuta, sinceridade, tentativa de compreensão e vínculo com base na confiança, de ambas as partes.
Para ilustrar essa relação e finalizar a conferência, que contou com a mediação do professor emérito da UFMG, Ênnio Leão, e com a presença da aluna do 6° período de Tecnologia em Radiologia, Mariana Cristina, o professor João Gabriel recorreu a um quadro de Luke Fields (1884-1927), pintor neo-romântico inglês.
Na obra, intitulada “Médico”, é possível ver que a luz estética, ou seja, a parte que chama atenção do espectador, está entre o olhar do médico e o do paciente, que é uma criança.
Talvez ainda seja tempo de desviar um pouco a luz da tecnologia – e seus exames – e voltá-la para o ser humano.
3º Congresso
A programação do 3º Congresso Nacional da Saúde da Faculdade de Medicina da UFMG reúne sete conferências, mais de 10 palestras e 40 mesas-redondas em torno do tema “Cenários da Saúde na Contemporaneidade”.
O Congresso vai até 5 de setembro, com atividades de 8h às 18h, diariamente, divididas em oito eixos temáticos. O Congresso conta ainda com programação cultural, com exibição de filmes, exposições, lançamento de livros e apresentações ao longo da programação.
A Secretaria executiva do 3º Congresso Nacional da Faculdade de Medicina da UFMG atende na sala Oswaldo Costa, 21, térreo da Unidade.
Acesse a programação completa.
Acesse a página eletrônica do 3º Congresso Nacional de Saúde.
Mais informações: 3409 9105 ou 3409 8055, ou ainda pelo e-mail 3congresso@medicina.ufmg.br.