Doença que segregou pessoas por décadas persiste no século 21

No Janeiro Roxo, entenda porque o número de casos de hanseníase no Brasil ainda é alto


15 de janeiro de 2020 - ,


É nos grandes bolsões de pobreza que uma das doenças mais antigas do mundo faz novas vítimas todos os anos no país. São cerca de 30 mil casos de hanseníase diagnosticados no Brasil anualmente, segundo dados do Ministério da Saúde. O país é o segundo no ranking mundial da doença, antigamente conhecida como lepra, e o único que não conseguiu alcançar a meta da Organização das Nações Unidas (ONU) de um caso a cada 10 mil habitantes. Nas desigualdades sociais do país, a doença encontra meios para continuar endêmica.

De acordo com dados do Ministério da Saúde, a região Centro-Oeste brasileira é onde se concentra a maior parte dos casos de hanseníase, 41% em 2018.  Mas mesmo dentro de uma mesma região ou cidade, a distribuição dessa enfermidade pode variar significativamente. Um dos fatores que determina essa distribuição é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

“Se jogar no mapa, onde tem mais casos são nos estados com IDH mais baixos e isso tende a se repetir dentro das próprias cidades”, explica o professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG, Marcelo Grossi.

Isso porque a hanseníase tem relação com o estado nutricional, nível de educação formal e desenvolvimento da região, como saneamento. No entanto, de acordo com Grossi, a correlação da hanseníase com o IDH não exclui casos da doença em outros extratos sociais.

“As condições sociais ajudam na proteção contra a doença, uma vez que a pessoa tem melhores condições de vida, mais recursos de saúde e até mais informações sobre a doença, levantando a suspeita de hanseníase mais precocemente”, analisa.

O Saúde com Ciência desta semana dedica série especial sobre a hanseníase. Ouça os programas aqui.

Resistência

O microrganismo causador da doença atinge, principalmente, os nervos dos braços, das pernas e da pele. Os principais sinais são manchas esbranquiçadas ou avermelhadas na pele e diminuição ou perda de sensibilidade ao toque, à dor, ao frio e calor. A hanseníase é transmitida pelo ar, de pessoa para pessoa. Mas ao contrário do que muitos ainda pensam, a doença não é altamente contagiosa.

“A maioria das pessoas tem uma defesa natural contra a doença”, afirma Marcelo Grossi.

Segundo ele, a bactéria que causa a hanseníase é relativamente fraca do ponto de vista da capacidade de provocar a doença. É preciso estar convivendo por muito tempo com uma pessoa sem tratamento da doença para que ela seja transmitida. “Também existem outros fatores que ajudam na proteção, como maior IDH e a proteção indireta em outras vacinas”, explica.

Não existe uma vacina contra a hanseníase. Mas a BCG, vacina usada para tuberculose, protege indiretamente contra alguns tipos da hanseníase. “Essa somatória de fatores faz com que a doença não se espelhe muito. Então, a gente nunca teve uma epidemia da hanseníase no país”, pondera Grossi.

Saiba mais
O Ambulatório Multiprofissional de Hansenologia do Hospital das Clínicas da UFMG elaborou cartilhas sobre a hanseníase com linguagem acessível aos profissionais e população em geral. Acesse:
>Informações necessárias para o profissional de saúde
> Vamos falar sobre hanseníase?

Prisões

O tratamento da hanseníase é simples e pode ser feito em casa e no posto de saúde, sem necessidade de internação. A cura definitiva é certa e não há sequelas quando a doença é tratada em fases inicias. No entanto, durante várias décadas, os portadores da hanseníase receberam como tratamento o extremo preconceito.

Colônias, como a Santa Isabel, em Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais, segregou por anos pessoas como o senhor José André Vicente, que está perto de completar 85 anos no fim de janeiro, sendo 76 vividos na ex-colônia.

“Internei criança, na época não havia medicação apropriada. Veiemos para a colônia preso, se a gente tentasse fugir, quando a gente tentava voltar de novo, ficava de castigo na cadeia, porque fugiu”, conta José Vicente.

Casado com Josina, também ex-interna da Colônia, José Vicente conta que o preconceito dificultava os cuidados médicos. “Os enfermeiros eram nós, pessoas não tinham coragem de vir trabalhar, mesmo a saúde pública aumentando o salário em 20%. Ensinaram os pacientes a trabalharem com enfermagem, sem faculdade, sem nada”, lembra Vicente, que é integrante do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseíase (Morham-Betim).

Segundo ele, apesar de hoje ser menor, a discriminação ainda continua. Para curar o preconceito que ainda existe, todos os anos ele ajuda na organização do “Concerto Contra o Preconceito”, realizado na ex-colônia, durante Janeiro Roxo, mês que marca a conscientização para a doença. Com atividades culturais e educativas, o evento leva esclarecimento para a população sobre essa enfermidade, que deixou marcas para além de transformações no corpo.

>> Conheça mais sobre a história da ex-colônia Santa Isabel por meio do relato de vida de José Vicente aqui.

Sobre o Programa de Rádio

O   Saúde com Ciência é produzido pelo Centro de Comunicação Social da Faculdade de Medicina da UFMG e tem a proposta de informar e tirar dúvidas da população sobre temas da saúde. Ouça na Rádio UFMG Educativa (104,5 FM) de segunda a sexta-feira, às 5h, 8h e 18h. Também é possível ouvir o programa pelo serviço de streaming Spotify