Idosos em situação de rua: luta contra o vírus invisível e o abandono aparente

Combate ao preconceito e afirmação de direitos básicos para quem envelhece nas ruas redobram em importância neste momento


07 de julho de 2020 - , , ,


*Gabriela Meireles

Eles estão nas praças, embaixo de viadutos e em inúmeros outros cenários urbanos. Já há bastante tempo, muitos só contam com a própria companhia. Assim, para os idosos em situação de rua, o isolamento social é realidade desde muito antes da pandemia. No entanto, ao contrário do restante da população, esse afastamento não os protege do contágio, mas intensifica suas vulnerabilidades.

“A vida na rua é uma das situações mais inóspitas que podemos imaginar para uma pessoa”, alerta o professor do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina UFMG, Frederico Garcia. “Ela torna-se ainda mais inóspita à medida que envelhecemos. Isso porque o envelhecimento é marcado pela perda ou insuficiência de nossos sistemas orgânicos e mentais”, explica o professor.

“Os idosos [na rua] são particularmente mais vulneráveis neste momento e cabe lembrar que o próprio Estatuto do Idoso assegura a eles a obrigação de cuidado, abrigo e proteção”, afirma Garcia.

Para o professor, a atual pandemia representa uma terceira onda de desafios, movida, principalmente, pela dificuldade em acessar informações. “Além disso, as medidas preventivas divulgadas pelo Ministério da Saúde, como a lavação das mãos, o uso de álcool em gel e uso de máscaras, são de difícil acesso às pessoas que vivem na rua”, completa.

Um diagnóstico mais atento

De acordo com a Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua, antes de planejar o melhor amparo a esses idosos, é preciso conhecer os desafios que eles enfrentam, sempre considerando que esse é um grupo extremamente heterogêneo. Afinal, se há diversidade de pessoas, também existe variedades nas exigências, condições do dia a dia e causas que conduziram cada pessoa à situação de rua. Isso sem contar os traços de cada personalidade e o olhar próprio sobre a condição em que estão.

O professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina UFMG, Flávio Chaimowicz, ressalta que os idosos em situação de rua estão intensamente expostos aos problemas vividos pelas populações de baixa renda. Sem moradia, questões relacionadas à nutrição, segurança, assistência em saúde e seguridade social são agravadas pelos desafios do envelhecimento, que incluem múltiplas doenças, a redução da massa muscular e óssea, bem como da capacidade respiratória e cardiovascular.

“No caso de idosos com doenças neuropsiquiátricas (esquizofrenia, demência, alcoolismo) os problemas são ainda maiores, especialmente relacionados à segurança e ao risco de quedas”, aponta.

Somado a isso, de acordo com Flávio Chaimowicz, não podem ser ignorados os impasses na assistência à saúde desse grupo. “É mais difícil vincular a uma equipe volante para o necessário acompanhamento de longo prazo”, explica.

Sem um acompanhamento adequado, outras ações também ficam impossibilitadas, como resgatar o histórico médico do paciente, fazer avaliações multidisciplinares, obter exames complementares e avaliar o tratamento instituído. Além disso, a situação se agrava pelo preconceito e descaso no tratamento a essa população, que ainda não foram totalmente superados.

Considerando todos esses obstáculos, Chaimowicz alerta que muitos idosos que vivem nas ruas acabam procurando auxílio em saúde somente em último caso. Muitas vezes, sendo encaminhados por uma instituição de assistência ou serviço de resgate, não por iniciativa própria.

A luta contra o abandono

Combater um imaginário social sobre si, não é tarefa fácil. Para muitas pessoas, quem está nas ruas deve necessariamente ser um dependente químico, criminoso, “louco” ou um “merecedor” daquela situação. Ao insistir nessa postura, é muito mais difícil para a população que está na rua alcançar sua autonomia. Afinal, como fortalecer políticas de inclusão quando a vontade geral pede que essas pessoas continuem afastadas?

Para os idosos nesse contexto, outras formas de discriminação ganham espaço. “Os velhos estão sendo mais estigmatizados com o surgimento do coronavírus, porque a sociedade já tem o preconceito internalizado”, afirma Gelton Pinto Coelho Filho, economista e coordenador geral do projeto Canto de Rua Emergencial, da Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte. “Bastou dizer que o vírus tinha maior letalidade entre as pessoas de mais idade para virar ‘uma doença de velhos’”, completa.

Ainda de acordo com Filho, a revisão desse imaginário é fundamental para a qualidade de vida e sobrevivência dessa parcela da sociedade.

“Enquanto não houver um olhar mais atento e diferenciado, tanto da sociedade civil como um todo, quanto das autoridades responsáveis, o que resta para os idosos em situação de rua é o que você chama de assistencialismo ou caridade e que eu prefiro denominar de compaixão”, finaliza.

Repensando políticas públicas

Segundo especialistas, o diagnóstico dos problemas e o combate ao preconceito devem orientar qualquer ação voltada para a efetivação dos direitos da população de rua. Isso inclui os censos oficiais a serem estruturados e as políticas públicas que serão aplicadas com base nesses dados. Para isso, a longo prazo, planejamentos estruturantes devem conseguir superar os compensatórios ou emergenciais.

“A nossa bandeira de luta já é, desde muito tempo, a moradia primeiro”, esclarece um dos coordenadores do Movimento Nacional da População de Rua, Samuel Rodrigues. De acordo com ele, a partir do momento em que esse indivíduo tem um lugar para morar, ele passa a ter um território. Assim, “ele fica vinculado a um posto de saúde, as famílias são vinculadas a uma creche ou uma escola e aí sim você passa a ter pessoas territorializadas”, completa.

O coordenador também chama atenção para o pós-pandemia, que pode aumentar a pobreza e miséria e levar mais pessoas para a situação de rua. “Nem todas as pessoas vão dar conta de reestabelecer seu emprego ou de se recuperar economicamente, nesse processo que está sendo tão avassalador”, alerta. Por isso, para Samuel Rodrigues, vale refletir sobre a maneira discriminatória de isolar pessoas nas cidades, o que ocorre partir de suas vulnerabilidades e sem permitir a elas a possibilidade de transformação.


*Gabriela Meireles – estagiária de Jornalismo
Edição: Karla Scarmigliat