Estudo reúne percepções sobre convívio com a fenilcetonúria

 

Tese buscou compreender as dificuldades enfrentadas pela equipe de saúde e por familiares em relação à doença. Dieta ainda é o fator mais preocupante

 

 

A fenilcetonúria (PKU) é uma doença genética ocasionada pela deficiência ou ausência de uma enzima sintetizada pelo fígado, a fenilalanina hidroxilase. Essa alteração aumenta as concentrações de fenilalanina no sangue, podendo levar ao retardo mental irreversível.

 

O tratamento da doença crônica é um desafio para a equipe de saúde: além da dieta restrita, as atividades da família da pessoa com fenilcetonúria passam a ser centradas na existência da doença: são exigidos exames sanguíneos contínuos e deslocamentos frequentes dos pacientes e familiares para as consultas.

 

Acompanhando as dificuldades vivenciadas pelas famílias, do diagnóstico ao tratamento da PKU, e os desafios enfrentados pela equipe multiprofissional, a nutricionista Rosângelis Del Lama Soares defendeu doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, área de concentração em Saúde da Criança e do Adolescente da Faculdade de Medicina da UFMG.

 

Rosângelis, que atua no Nupad há 16 anos, desenvolveu um estudo qualitativo, em duas etapas, que coletou depoimentos das mães de crianças afetadas pela doença e dos profissionais do Serviço de Referência. “Eu quis me aprofundar nesse universo para compreender melhor o impacto do diagnóstico nas famílias e as repercussões do tratamento no meio em que vivem com o objetivo de ampliar nossa visão e melhorar nosso atendimento”, afirma.

 

Os resultados do estudo mostraram que as consequências da PKU se estendem à estrutura familiar, impondo a necessidade de reorganização para atender as demandas cotidianas e os cuidados com o tratamento dietético. “Para os profissionais, o tratamento da doença crônica ainda é um desafio. A formação teórica e a abordagem científica não são suficientes para abarcar a complexidade do cuidado e de todas as questões envolvidas no tratamento”, conclui a pesquisadora.

 

 

Dieta, acompanhamento profissional e estigmas

 

Rosângelis entrevistou 14 mães de crianças de 2 a 6 anos de idade com a doença. Ela explica que a faixa etária foi escolhida porque até os dois anos de idade a dieta é mais simples e a adesão é praticamente plena, já que a criança tem baixa autonomia e come o que a mãe oferece. “Quando ela passa a ter mais contato com outras pessoas aumentam as chances de receber alimentos não permitidos, tanto por desconhecimento das pessoas quanto por piedade em relação às restrições impostas ao fenilcetonúrico”, explica. Já as mães foram escolhidas por representarem a maioria dos acompanhantes dos serviços de saúde e serem informantes privilegiadas sobre a saúde dos filhos.

A primeira dificuldade mostrada foi a receptividade do diagnóstico, realizado na triagem neonatal, conhecida como teste do pezinho. “A comunicação da alteração no teste de triagem neonatal resulta em grande impacto, desencadeando sentimentos imediatos de susto, choque, desorientação e revolta”, explica Rosângelis. De acordo com a pesquisadora, as mães carregam sentimento de culpa e reconheceram que se sentem sobrecarregadas em relação aos múltiplos papéis sociais assumidos pelas mulheres. “Percebemos que há famílias que transformam a PKU em causa de isolamento, enquanto outras buscam superar a doença e a criança vive melhor. Sabemos que não é algo fácil de lidar e que a aceitação e determinação tornam o enfrentamento mais viável”, propõe a pesquisadora.

 

Assim que diagnosticada, a criança deve comparecer a consultas periódicas e realizar exames de sangue semanais até os seis meses de idade, quinzenais de seis meses a um ano e, depois, mensais. A alta frequência é mais um dos pontos de dificuldade da família, acentuada pelo fato dos residentes dos 853 municípios de Minas Gerais terem de viajar até a capital para realizar o tratamento. Rosângelis exemplifica casos de quem precisa viajar mais de 600 quilômetros para ir e retornar num mesmo dia.

 

A dieta representa o maior problema no convívio com a doença. A restrição de proteína, especialmente de origem animal, não permite uma dieta vegetariana em livre demanda, porque até os vegetais têm de ser consumidos em quantidade calculada, de acordo com a tolerância individual. Para a nutricionista, a alimentação oferecida no desjejum, lanches e merenda escolar é a mais desafiadora, uma vez que os alimentos que contêm farinha de trigo não são permitidos na dieta, tais como: pães, biscoitos, bolos.

Ela conta que as mães relatam que em algumas escolas os filhos ficam confinados em ambientes isolados no momento da merenda, ou são comunicados a não irem à escola em datas comemorativas onde serão oferecidos salgadinhos, sorvetes, doces, bolos confeitados, levando-os ao isolamento social.

 

Para garantir a ingestão diária adequada de proteínas e permitir crescimento e desenvolvimento normais, os fenilcetonúricos devem ingerir um substituto proteico associado à dieta restritiva, de três a quatro porções por dia. “Esse produto, em geral à base de aminoácidos livres, apresenta um sabor e odor desagradáveis, podendo também representar um estigma ao fenilcetonúrico” explica Rosâgelis.

 

Em outro momento houve uma reunião da equipe multiprofissional, com assistente social, nutricionistas, enfermeiros, auxiliares técnicos, médicos pediatra e geneticista do Nupad, órgão responsável pela triagem neonatal em Minas Gerais.

 

“O sentimento de impotência é evidenciado entre os profissionais, principalmente quando não ocorre a adesão esperada ao tratamento. Entretanto, a integração e o suporte entre os membros da equipe revelaram-se como estratégia de sustentação diante dos desafios apresentados”, aponta Rosângelis.

 

 

Expectativa

 

Nas entrevistas, a pesquisadora percebeu que as mães se sentiram mais valorizadas por serem ouvidas e acabaram se expressando de forma diferente do esperado. Os resultados mostraram a existência de realidades distintas entre as famílias e a necessidade da equipe profissional ter uma escuta mais sensível para poder acolher cada uma da maneira como precisa. “Apesar das dificuldades, elas reconheceram a importância do diagnóstico precoce e tratamento adequado que permitem o desenvolvimento normal às crianças com PKU”, conta a nutricionista.

 

O estudo também apontou para a necessidade da descentralização do tratamento, para melhorar o fluxo dos atendimentos, aumentando o vínculo da rede básica de saúde com os pacientes e seus familiares. Esse processo em construção visa também reduzir os deslocamentos das famílias para Belo Horizonte e minimizar o custeio do Tratamento Fora de Domicílio (TFD), um benefício concedido pelos municípios e regulado por portaria federal.

 

Outras possibilidades de ações que surgiram foram: ampliação da escuta diferenciada para um atendimento mais humanizado e eficaz; ativação de grupos operacionais com adolescentes para esclarecimentos e conscientização permanentes; atendimento especializado para as gestantes fenilcetonúricas, para evitar a PKU materna; contato mais estreito com as escolas para melhorar a inclusão social das crianças; promover debates com os profissionais e dirigentes do Serviço de Referência para elaboração de outras estratégias com finalidade de reduzir as dificuldades.

 

“Temos expectativas positivas de melhorias para amenizar os problemas. Quem sabe até a indústria mineira passe a oferecer novos produtos para facilitar a dieta?” expõe a nutricionista, lembrando que em outros países e alguns estados já existem no mercado alimentos especiais diversificados como pães, biscoitos, bolos, chocolates e queijos, entre outros produtos.

 

 

Título: Convivendo com a Fenilcetonúria: a percepção materna e da equipe multiprofissional

Nível: Doutorado

Autora: Rosângelis Del Lama Soares

Orientador: Marcos José Burle de Aguiar

Coorientadora: Lúcia Maria Horta Figueiredo Goulart

Programa: Saúde da Criança e do Adolescente

 

Data da defesa: 27 de maio de 2014

 

 

Publicado em 14 de julho, no portal do Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (Nupad). O Nupad é um órgão complementar da Faculdade de Medicina da UFMG.