Execução do teste do pezinho ampliado será desafio para a rede do SUS em estados e municípios

Em entrevista, professora Ana Lúcia Pimenta Starling analisa a sanção da Lei 14.154/2020.


07 de junho de 2021 - , , , , , ,


Programas de triagem neonatal diagnosticam e oferecem tratamento para doenças que precisam de atenção já nos primeiros dias de vida. Foto: GESP/A2img.

No último dia 26 de maio foi sancionada e publicada a Lei nº 14.154, que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente, ampliando o número de doenças rastreadas pelo teste do pezinho oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). As mudanças vão entrar em vigor um ano após a data da publicação da lei.

Atualmente são triadas e tratadas seis doenças raras e congênitas: hipotireoidismo congênito, fenilcetonúria, doença falciforme, fibrose cística, deficiência de biotinidase e hiperplasia adrenal congênita. Com a expansão, dezenas de doenças serão inseridas no programa. A inclusão será em cinco etapas: 

  • Etapa 1: além das seis atuais, toxoplasmose congênita;
  • Etapa 2: galactosemias, aminoacidopatias, distúrbios do ciclo da ureia e distúrbios da betaoxidação dos ácidos graxos;
  • Etapa 3: doenças lisossômicas;
  • Etapa 4: imunodeficiências primárias;
  • Etapa 5: atrofia muscular espinhal.

Em Minas Gerais, a Secretaria Estadual de Saúde (SES/MG) é a responsável pela gestão do Programa de Triagem Neonatal (PTN-MG), que conta com o Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (Nupad) como serviço de referência na sua execução. Em entrevista, a professora aposentada da Faculdade de Medicina da UFMG e coordenadora acadêmica do Nupad, Ana Lúcia Pimenta Starling, fala sobre os desafios e potencialidades da nova legislação. Confira:

Qual sua avaliação geral sobre a Lei nº 14.154?

“Na minha avaliação essa é uma lei que veio ao encontro do desejo tanto de profissionais de saúde, quanto da população. Ela foi muito bem estruturada e será implementada em etapas, como foi o Programa Nacional de Triagem Neonatal, em 2001. Isso permite que os gestores determinem como fazer a triagem e quais as doenças poderão ser triadas. Ao mesmo tempo, a legislação permite que, com novas evidências científicas, isso possa ser modificado.

Eu considero que, quando você se propõe a fazer uma triagem neonatal, ela deve ser feita de forma a permitir também a confirmação do diagnóstico, o tratamento e o acompanhamento dessas pessoas pela vida inteira, de forma adequada e realizada pelo SUS. Esse será um desafio para os gestores públicos.”

Quais pontos mais fundamentais devem ser observados durante a regulamentação desta lei?

“A triagem neonatal é muito ampla e varia de país para país. Temos países desenvolvidos que triam nove doenças, enquanto outros fazem para muito mais de 50. Será preciso discutir os benefícios que essa ampliação vai nos trazer. Temos que saber o que triar, como triar e o que fazer a partir disso. 

O Brasil é um país continental e diverso, temos realidades diferentes e desafios até para a execução nacional da triagem das atuais seis doenças. A ampliação vai demandar capacitação de pessoas, equipamentos e insumos caros, então vamos precisar de novas estruturas e equipamentos. Um exemplo é o espectrômetro de massa, que não pode ficar em qualquer sala. Ele tem especificações técnicas e precisa funcionar 24 horas por dia. É uma demanda diferente da qual o país está acostumado.”

Quais desafios os estados irão encontrar em termos de capacitação dos profissionais da rede? Haverá desdobramentos também na formação de pediatras, nutricionistas, etc?

“Eu acredito que a capacitação de profissionais da rede é fundamental e precisa ser feita de forma contínua. Além disso, temos que capacitar também as famílias dos pacientes além de profissionais para serem referências nas diversas regiões. Isso porque, mesmo os profissionais que são atualmente referências, vão ter que aprender a conduzir de maneira adequada as novas doenças triadas, com qualidade.

Vai ser um impacto grande, com treinamento iniciado ainda na graduação. São doenças muito raras e por isso temos que capacitar um leque de profissionais, não só pediatras, mas também geneticistas, cardiologistas, nutricionistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, assistentes sociais, psicólogos, entre outros, que estarão atuando em todo o estado.”

E qual sua expectativa sobre o impacto da ampliação no universo de atuação dos Programas de Triagem Neonatal? 

“Em Minas Gerais, os recém-nascidos já estão sendo testados para os defeitos de betaoxidação, em pesquisa do Nupad. Sabemos que o tratamento é, relativamente, simples, mas os pacientes podem desenvolver quadros agudos, às vezes graves. Atualmente nós fornecemos um documento de orientação por escrito, descrevendo os quadros de descompensação mais comuns para que as famílias apresentem no serviço de urgência de sua região. Esse suporte tem os protocolos específicos para o tratamento desse episódio agudo do paciente, uma hipoglicemia, por exemplo. O impacto já é grande, com o acréscimo de apenas um grupo de doenças e será muito maior com a inclusão desses vários outros determinados pela nova lei. Mas, com certeza, essa ampliação é necessária e trará importante contribuição à saúde e repercussão social à nossa população.

Temos que criar uma rede sustentada tendo como suporte o grupo de referência, mas que tenha também apoio no local onde o paciente mora. Temos que andar de mãos dadas e criar toda essa rede.”

O que podemos dizer sobre os conjuntos de doenças escolhidas? Para todas já existe tratamento?

“Esses grupos da expansão contemplam a maioria das doenças em que é possível atuar de alguma forma. Para as que não têm tratamento, há um suporte que pode ser dado precocemente e melhorar a qualidade de vida do paciente e de sua família. Vai fazer com que a pessoa viva mais e com maior qualidade. 

Nenhuma dessas doenças tem cura, exceto a toxoplasmose congênita, que ainda assim pode ter sequelas. O interessante é que a lei abre a possibilidade de alterações com base em novas evidências científicas.”

A legislação prevê futuras alterações do grupo de doenças triadas com base em eventuais novas evidências científicas. Pode nos falar um pouco sobre como este cenário das doenças triadas ao nascimento está relacionado com as evidências científicas?

Professora Ana Lúcia Starling. Imagem: CCS/Faculdade de Medicina da UFMG

“As evidências científicas são as responsáveis por nos subsidiar em relação à tomada de decisões quanto à inclusão dessas doenças nos painéis da triagem. Se há tratamento eficaz, se há suporte e se esse suporte e tratamento irão impactar na vida da pessoa são algumas das evidências que podemos citar. O sequenciamento genético é outro campo em que haverá suporte de evidências. Existem dezenas de mutações descritas pela ciência e que poderão contribuir com o entendimento e o tratamento futuro dessas doenças. 

O Nupad tem a extensão como cerne, mas atua também na pesquisa e no ensino. As nossas pesquisas são feitas, em geral, para exatamente subsidiar o painel da triagem neonatal. Tivemos projetos-piloto em doenças que depois vieram a ser implantadas como parte da triagem, como a deficiência de biotinidase e hiperplasia adrenal congênita. 

Atualmente está em andamento uma pesquisa sobre defeitos de betaoxidação, grupo que está na fase 2 da nova lei. Também coletamos dados sobre a síndrome imunodeficiência combinada grave (SCID), doença que estará na fase 4 da ampliação, e já estamos avaliando os dados. Temos proposta também de estudar a atrofia medular espinhal, que estará na fase 5. Tudo isso depende de recursos para a execução. O Nupad por estar dentro de uma Faculdade de Medicina pública tem tudo para avançar e continuar a exercer seu papel, junto com a SES/MG.”

O atual cenário de cortes orçamentários na educação podem impactar a triagem?

“Os cortes foram gerais e impactaram em toda a universidade. Nós somos otimistas e esperamos que tudo melhore e voltemos a ter condições mais propícias para realizar as nossas pesquisas. O que percebemos é que o cenário nos demanda a capacidade de nos adaptarmos. Por exemplo, com a pandemia de covid-19 o Nupad realiza diversos projetos nessa área, além de fazer parte da rede de laboratórios da UFMG para testagem da doença. Já realizamos mais de 90 mil testes RT-PCR para diagnóstico de covid-19.”

Ajustes tecnológicos serão necessários em Minas Gerais?

“O Nupad tem equipamentos que possibilitam, com adaptações técnicas, fazer a triagem de quase todas as doenças das primeiras etapas, como aminoacidopatias, galactosemias e outras. Após a triagem, os pacientes com resultados alterados necessitam ser encaminhados para confirmar o diagnóstico e iniciar o tratamento.

Também será necessária a compra de equipamentos e capacitação técnica para operação desses equipamentos, para feitura e análise de exames e, ainda, de forma muito importante, fazer a busca ativa dos pacientes em tempo hábil para início do tratamento. Haverá forte impacto inicial nos programas, mas necessário para podermos crescer.”

Será acrescido o parágrafo 4º no artigo 10, que obriga profissionais de saúde a informar as gestantes e puérperas sobre eventuais diferenças entre as modalidades da triagem oferecidas no SUS e na rede privada. Como a senhora vê essa mudança?

“Espero que isso, em um futuro não muito distante, não seja motivo para as famílias deixarem de fazer o teste gratuito pelo SUS, que contemplará mais doenças após a expansão. Mas atualmente, o que acontece em muitos casos, é que as famílias que fazem o exame ampliado fora do SUS e que recebem um resultado “alterado”, muitas vezes não conseguem as respostas adequadas em relação ao resultado que receberam. São doenças raras e ainda são poucos os profissionais que podem oferecer essas respostas tão necessárias. Acabam sendo encaminhados ao SUS e, infelizmente, o que acontece é que o tempo ideal para início de tratamento muitas vezes se perde nesse processo. Há uma necessidade de deixarmos claro a diferença entre um programa de triagem neonatal e apenas uma testagem: um programa oferece não apenas a triagem, mas tudo o que implica na condução de um possível diagnóstico, seu tratamento e monitoramento constante.

Nesta semana, por exemplo, tivemos uma criança com quadro suspeito para fenilcetonúria, cujo resultado saiu na segunda-feira e que hoje já estava sendo atendida em Belo Horizonte, no Hospital das Clínicas, com apenas 15 dias de idade, vinda do interior do estado. A parceria entre a Secretaria de Estado da Saúde, o Nupad e os 853 municípios, viabiliza isso! Há uma grande capilaridade em rede em que os esforços são somados com o objetivo de se oferecer as melhores chances aos pacientes.

Vamos chegar ao ideal no dia em que esta lei estiver totalmente implantada no país, pelo SUS. É a melhor solução e, para mim, a única.”

O Nupad é um órgão complementar da Faculdade de Medicina da UFMG e foi criado em 1993 com o objetivo de implantar o PTN-MG, sob a gestão da SES-MG. É cadastrado como Serviço de Referência em Triagem Neonatal (SRTN) do estado pelo Ministério da Saúde. O Nupad realiza atividades de extensão, pesquisa e ensino, com destaque na área da saúde da criança e da mulher, especialmente por meio de procedimentos e técnicas em triagem neonatal, triagem pré-natal e genética.

Laboratório de Genética e Biologia Molecular (LGBM) do Nupad. Imagem: TV UFMG / UFMG.

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